Anonimato de um paraíso (sobre vida e obra de Jorge Amado)

OBS.: texto de Literatura sobre vida e obra de Jorge Amado

Anonimato de um paraíso

Eu admirava as belas cores cintilantes que preenchiam meu campo de visão. O manto era de flores do campo as mais exóticas, como as africanas de coloração amarelada com poucas pigmentações de um tom chocolate. E o perfume. Ah! Esse era perturbador. Transportava-me ao passado, lembranças insuportavelmente doces. Aquele cenário era completo balançando-me na cadeira de vime avermelhada e relembrando minhas grandes obras, uma vez que aqui a memória é um presente divinamente reconfortante.

Ao longe, o som calmo das águas refrescantes das dezenas de cachoeiras me aninhava em súbita proteção. O paraíso era um lugar estranhamente confortável e assustadoramente silencioso convidando a não partir. Eu, como bom amante fiel do amor à liberdade, pegava-me meio contrariado a esta ideologia. Como se permitir a tamanha alienação? A lei transitava em minhas veias urgentes que aclamavam o direito à liberdade de culto religioso. Eram regras de cunho sagrado. Dominavam a minha matéria. Enchiam-me os pulmões de puro louvor. Acabei acatando tais regras. A atmosfera parecia entorpecer minha negação a tais questões.

Uma gostosa e intrusa lembrança transfigurou-se para outro papel. O calor do meu povo era a válvula que impulsionava minhas inspirações. Uma súbita sensação de felicidade aflorou-se em meu peito baiano. Sou amado por pessoas anônimas e íntimas. Olho-me no espelho e contemplo com orgulho e veemência a trajetória de obras legendárias. Obras vencidas. Num lampejo mútuo, a figura de minha mulher ao meu lado aclama em meus olhos esperançosos. Zélia Gattai. Minha esposa. Minha eterna musa. A data era tão clara. O ano era 1945. Juntos buscámos pela liberdade. No movimento pela anistia dos presos políticos.

Mas a realidade já cutucava-me aborrecidamente. Não estávamos mais juntos. Há caminhos diferentes para todos depois da morte. Em um sopro ligeiro de fôlego recitei: “Avô, mesmo que a gente morra, é melhor morrer de repetição na  mão, brigando com o coronel, que morrer em cima da terra, debaixo de relho, sem reagir. Mesmo que seja pra morrer nós deve dividir essas terras, tomar elas para gente. Mesmo que seja um dia só que a gente tenha elas, paga a pena de morrer”.

O lutar e não desistir eram preceitos dos quais me orgulhava. De repente, fui pego de guarda baixa. Pedro Bala, uma de minhas personagens, me veio à mente. Senti saudades. Ah! Como eu senti! Queria que ele fosse de verdade. Queria que existissem mais pessoas como os capitães para mostrar a cultura baiana da qual me orgulho e na qual me incluo, afinal, sou baiano com força inabalável. Essa ideologia está enraizada em minha fé. Cravada em meu peito.

Um burburinho palpitou em meu coração. Suspirei profundamente. Enchi o peito de graça e recitei: “Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também a ouvir música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia.

Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”. E isso bastou. As lágrimas dançavam sobre minhas pálpebras já muito úmidas de fervor e, molhavam drasticamente, a gola de minha camisa.

Quero aqui também fazer algo. Lutar pelos direitos do povo, embora me sinta ironicamente satisfeito com a sensação de dever comprido, mas sempre acho que poderia ter feito mais pelo meu povo baiano. Dedicava minhas crenças e ideais na criação de minhas personagens. Colocava-os em certo ponto crítico e recebia algumas “advertências”. Mas não ligava. A liberdade era algo que eu queria dar a eles. Ela tinha que ser conquistada.

Enquanto me perdia em pensamentos canalizados, uma mulher de face esbelta desfilou na minha frente. Lembrei-me de Dona Flor. Ela seria a personagem perfeita se tivesse vivido no plano real. “A viração desatava os cabelos lisos e negros de Flor, punha-lhe o sol azulados reflexos. No barulho das ondas e no embalo do vento”. E ironicamente esta mulher passeava com dois homens que cantarolavam melodias desconhecidas. Uma disputa por atenção estava presente. Era evidente.

A vontade de andar descalço sobre as ondas quebradas da praia baiana era dolorosa até certo ponto de meu dia. A noite era como um sonho. A mágica é a essência desse lugar. Disso estava convicto. E assim ela chegou. As estrelas gritavam por amor. Todos aqui são como elas. Cada qual com seu espaço e cada qual com seu momento de brilho único e singular. Fechei meus olhos e despedi-me de todas as lembranças passadas. Agora, restava-me esperar por minha família. Um último suspiro de esperança habita minha essência...

O dia era de uma brisa primaveril. Os grãos de areia quicavam em sintonia com as ondas. Andava sem rumo. Sem direção. Saindo do tapete escaldante. Sentia-me sufocar. Um presságio arrepiou-me a espinha. Um vulto pairava na janela do segundo andar do prédio em frente. É ele sem dúvida! Não estava alucinada! Pisquei, mas ele se foi. Resolvi entrar. E assim, a última página foi fechada.

Pasma com a descoberta. Tudo aconteceu rapidamente na Fundação Casa Jorge Amado, enquanto lia suas obras da estante. De repente um baque quase inaudível, um fundo falso desabou formando uma nuvem de poeira. Um livro de capa dura e de cheiro mofado caiu ao chão. Peguei-o, na capa nada dizia. Era o diário de premonição pós-morte de Jorge. Ah! Isso era indiscutivelmente fascinante.

Ele escrevera em segredo uma antecipação de como seria sua morte. Não pregaria meus olhos nessa noite. Quase gritei extasiada por ser a primeira e única a ter esse segredo compartilhado com Jorge. Minha cabeça ainda estava confusa: será que um dia eu o encontraria nesse paraíso particular e o veria pela segunda vez? Guardei o livro em minha bolsa de couro velha. Agora a espera seria uma agonia doentia. No céu, as estrelas brincavam com o crepúsculo.

Jheni Bento
Enviado por Jheni Bento em 13/04/2010
Reeditado em 15/09/2016
Código do texto: T2195253
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