O MAL É UMA CRIAÇÃO COLETIVA

Desde pequenininho nunca gostei desta história de um céu e um inferno para os quais os homens vão depois de mortos de acordo com seus atos individuais durante o tempo em que viveram na terra. Em primeiríssimo lugar, é claro, está o absurdo de uma vida após a morte depois que os sentidos, todos eles feitos de matéria, apodreceram. Para mim é evidente, desde que meu primeiro cãozinho morreu atropelado: coração parou de bater, sinais cerebrais cessaram, aquele bicho já era.

Mas esta teoria contém um aspecto moral que desde sempre me indignou: o de que, sozinhos, somos responsáveis por todos os nossos atos e daí a causa de nossa condenação ser individual. Obviamente na época eu ainda não sabia que tal teatro fora inventado pelos tiranos de todos os tempos, que ficavam fulos com a possibilidade de seus inimigos simplesmente terem a liberdade de morrer ao invés de serem obrigados a continuar a viver sob seu domínio cruel. Aí inventaram uma vida-após-a-morte para que não tivéssemos lugar para fugir.

Eu fui crescendo e confirmando a tese de que a culpa de nossos atos não é obra de uma vontade livre e indeterminada. Aliás, se existe uma coisa neste mundo altamente questionável é o tal do livre-arbítrio. Na verdade nós somos presas de nossos desejos e fazemos de tudo para sermos felizes. Por isso tenho a convicção de que os seres humanos têm uma tendência inata para a bondade, como bem o disse Rousseau. É muito mais vantajoso para o ser humano ser considerado um cara legal no meio da sociedade. Vai conquistar muito mais garotas e amigos do que se os outros o terem na conta de gente ruim.

Então porque nós cometemos atos ruins? Na verdade os cometemos sob influência do meio social. A sociedade é que nos incentiva a determinadas práticas, sejam elas boas, sejam elas ruins. A sociedade é que é, portanto, boa ou ruim, se é que existe isto. Eu nunca teria quebrado aquela lâmpada do poste do meio da rua se não tivesse sido instado a isto com gritos de “medroso” e “ruim de pontaria”. Aí então mirei e a acertei com precisão. Porém me arrependi quando uma senhora apareceu na janela e disse: “não faz isso menino”. Eu tinha uns oito anos de idade e aquilo me dói até hoje.

A sociedade valoriza algumas características que podem gerar conseqüências péssimas. Freqüentemente vemos as mulheres dizendo que só gostam de “homens com pegada”. As mulheres posam de coitadinhas mas são as maiores incentivadoras de determinadas atitudes dos homens. O que é um cara “de pegada”? Bom, em geral é aquele que as seguram com força e não lhes deixam outra saída a não ser ceder aos desejos daquele agente. Imagino que esta fantasia delas remete a tempos ancestrais ou são valorizadas pelo cinema, como na cena em que Reth Buttler leva Scarlet O’Hara à força escada acima depois que ela faz uma pirraça. Porém, muitos estupros também devem ter sido cometidos em nome da valorização desta “pegada”.

O sistema que vivemos hoje, o capitalismo, é pródigo em criar exemplos de que para se ter sucesso hoje em dia você não deve ser exatamente “bonzinho”. Muito pelo contrário. O que é um capitalista? É aquele indivíduo que decidiu acumular, explorando ao máximo possível os assalariados que não têm outra opção a não ser trabalhar se quiserem viver. E quando aqueles alcançam algum patamar de riqueza, são entrevistados e apresentados pelos meios de comunicações como se heróis fossem. Na grande maioria são seres desprezíveis e terrivelmente anti-sociais, capazes de botar dez mil pais de família na rua se puder substituí-los por uma máquina que faça o mesmo serviço.

A sociedade é terrivelmente hipócrita e valoriza aspectos externos de uma conduta em vez do seu valor intrínseco. Se quiser ser considerado um cara legal, faça isto e aquilo. OK. Aí o Bill Gates é endeusado porque doou duzentos milhões para um hospital. Palmas para o Bill. Mas na minha opinião, ele não é melhor que aquela mãe miserável que precisa lavar dez trouxas de roupa para sustentar sozinha seus três filhos. Aliás, se eu fosse o Bill Gates doaria logo um bilhão. Afinal, pra que alguém precisa de tanto dinheiro, meu Deus?

É muito mais fácil ser um cara legal em certas situações do que em outras. Poxa, se eu fosse filho da Fátima Bernardes e do William Bonner, eu seria um anjo de candura. Afinal, qual o motivo para não sê-lo? Vou ser bonito, ter uma vida confortável, passar minhas férias na Disneylândia, ter acompanhamento psicológico e saber que meu futuro está garantido, porque provavelmente vão me arrumar uma vaga numa novela da Globo. Quero ver ser assim nascendo filho de uma lavadeira e morar na mesma rua do maior traficante de drogas do morro, que é matador e namora as melhores mulheres da parada.

Por isso é que garanto ser o mal uma criação coletiva. E se alguém tiver que pagar pelos pecados individuais, que seja a comunidade inteira. Aliás, para cada crime que acontece, acho que a toda a sociedade deveria sentar-se também no banco dos réus. Ninguém é santo por ser isto ou aquilo. Todos os homens são egoístas e pretendem apenas salvar a si mesmos. Porque o filho da Fátima e do William merece ir para o céu e eu não? Porque ele é cristão e eu ateu? Fala sério.