Reportagem: O acesso nosso de cada dia - Por CIdo Coelho e Camila Galvez

“A primeira coisa que você tem de saber sobre nós é nunca nos chamar de portadores de necessidades especiais. Necessidades especiais todo o ser humano tem. E nós não somos portadores de nada, não é opcional ter um problema físico ou mental. Somos pessoas com deficiência, sem preconceitos ou juízo de valor”.

Conversar com Luis Kassab, assessor de infra-estrutura da Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania da Prefeitura de São Bernardo, é como ter uma aula sobre deficiência física. O que ele tem a oferecer é lição de vida para muitos que reclamam, mas nunca tiveram que enfrentar um problema semelhante. Kassab é portador de uma doença congênita desde que nasceu e se locomove com uma cadeira de rodas. É um exemplo de como a pessoa com deficiência pode ser incluída na sociedade moderna, dentro de suas limitações.

Ele concluiu o curso superior em Direito e tem um escritório de advocacia próprio, além de atuar na Prefeitura. Mas a vida de Kassab não é só trabalho. Ele também é vice-campeão brasileiro de natação paraolimpíca, posição conquistada no campeonato nacional de 2003. O cadeirante nadou por seis anos, com treinos diários de duas a quatro horas. Participou inclusive de competições em rios e em mar aberto, modalidade conhecida como nado livre. As provas em que ele competia possuíam percursos de 3000 metros. “Quando comecei a fazer nado livre, não havia uma categoria específica para pessoas com deficiência, e eu nadava com os atletas normais. Claro que não dava para competir, mas eu cheguei a receber reconhecimentos pela minha força de vontade. Acredito que, de tanto eu insistir, os organizadores das competições acabaram criando uma categoria de 1000 metros só para deficientes”, relembra o cadeirante, que hoje já não pratica mais natação, mas ainda lembra com carinho o que chama de “bons tempos”. Apesar da rotina puxada de ter dois empregos, Kassab não larga o esporte, pelo contrário. “Agora faço tiro adaptado para deficientes. As atividades físicas mantêm meu corpo vivo e forte”, afirma.

Kassab acredita que o apoio da família foi fundamental em seu desenvolvimento. “Meus pais tinham condições financeiras de me manter e isso foi muito importante, principalmente para a minha formação profissional”, disse. Mas quatro em cada dez moradores do ABC que tem algum tipo de deficiência física ou mental é carente e depende da assistência do governo para sobreviver.

Ressocialização a galope

Este foi o caso de Ronaldo Denardo, repórter e produtor da TV Sentidos. A adaptação à deficiência foi bastante complicada, já que ele tinha 22 anos quando sofreu um acidente de carro ao voltar de uma casa noturna e ficou tetraplégico. Era o auge da juventude, fase que mudou bruscamente com a nova realidade do corpo. “Demorei quase dois anos para voltar a colocar os pés na rua. Tudo foi muito difícil, desde ir ao banheiro sozinho até ter que sair com alguém dirigindo o carro para mim”, relembra.

A fisioterapia e outros tratamentos alternativos fizeram parte da vida dele durante o período de recuperação mais crítico. Denardo conseguiu ser atendido gratuitamente por uma clínica particular em Santo André, pois não tinha condições de pagar as despesas com remédios e procedimentos médicos. Mas o que mais pesava era o fato de não conseguir se adaptar a vida social com a deficiência.

O que Denardo não imaginava era que fosse encontrar nos animais um novo jeito de se relacionar com os seres humanos. “Recorri a ecoterapia, que é um tratamento alternativo feito com cavalos, com o primeiro objetivo de tentar melhorar a coordenação motora. Mal sabia eu que os benefícios viriam em maior quantidade no campo social”, afirma. O contato com os cavalos trouxe a vontade de ver a cara do mundo de novo e ser mais independente. “Comecei a acreditar que seria aceito pela sociedade depois que eu mesmo me aceitasse”, disse. E foi assim que Denardo voltou a participar ativamente da vida, e não apenas vê-la passar.

Logo depois de finalizar a ecoterapia conseguiu o emprego na TV Sentidos. É uma produtora de conteúdo da Avape – Associação para Valorização e Promoção de Deficientes – que faz uma programação voltada para a inclusão do deficiente físico e mental na sociedade. Exibido pelo canal ABC 3 da Vivax, os assuntos em pauta são relacionados à saúde, bem-estar, transportes, viagens, e tudo o que faz parte da vida de quem tem uma deficiência ou convive com alguém que tenha.

Um dia de cada vez

Luis Miranda deveria nascer como uma criança normal, mas por causa de um acidente de trabalho a mãe precisou interromper a gravidez aos seis meses de idade. Uma queda fez com que o recém nascido corresse o risco de ter paralisia cerebral, doença que o manteria em estado vegetativo para o resto da vida.

Mas Miranda surpreendeu os médicos e a paralisia foi apenas para a perna esquerda. Quando criança passou por uma cirurgia no tendão, porque só podia caminhar com a ponta do pé. Dos cinco aos dez anos, realizou muitas sessões de fisioterapia para recuperar parte dos movimentos. Agora, aos 20 anos, apesar da dificuldade para caminhar consegue colocar o pé no chão.

Miranda tem consciência das dificuldades que passou e sempre tentou superar tudo, lutando pela vida. Como Kassab e Denardo, o apoio dos pais foi fundamental para a reabilitação. “Nunca encarei as dificuldades como obstáculos. Sempre levei a vida normalmente”, conta.

A vontade de batalhar e vencer fez com que Miranda conseguisse trabalho na primeira vez que saiu em busca de uma oportunidade. A partir de uma central de apoio para o deficiente físico chegou à chance que ele esperava. Quando conseguiu o emprego atual, o segundo de sua vida, tomou uma decisão: devolver as carteirinhas de benefícios do governo de Santo André que possuía. “Não achava justo ter as carteiras já que podia pagar pelos serviços, pois estava trabalhando. Tem gente que precisa muito mais do que eu”, explicou. O próximo passo na carreira é cursar a faculdade de Administração. “Quero trabalhar até onde o meu corpo agüentar, não quero ficar dependendo de outras pessoas para nada”, completa.

Eu sou assim

Para muitos deficientes, é difícil aceitar a vida com limitações. Mas Pablo Morales não teve problemas nesse sentido. Aos quatro anos de idade ele teve um derrame que paralisou totalmente o lado direito do corpo. Depois desse dia, Morales se submeteu a quase 10 anos de sessões intensas de fisioterapia e fonaudiologia, além de fazer natação para recuperar parte dos movimentos e a fala. Apesar disso, sempre tentou ver o lado positivo da vida. “Eu já cresci assim. Acho que, como eu era criança quando tudo aconteceu, aceitei mais fácil”, diz.

Além da natação, a capoeira foi um grande aliado para o jovem. Ele pratica o esporte desde os seis anos no grupo “Capoeira Anastácia”. Como treina faz tempo, ele já é um quase mestre.

O mais difícil é encarar o uso do transporte coletivo. Morador de São Bernardo, Morales trabalha como técnico administrativo e tem uma dura rotina de mais três horas de viagem para chegar ao seu trabalho em São Paulo. Acorda as 4 e 30 da manhã para tomar o Parque Imigrantes sentido ao Terminal São Bernardo e de lá vai para o Terminal Santo André para ir de trem rumo a São Paulo.

Pablo tem planos de terminar a faculdade de Administração que ele trancou no segundo ano. Além disso, pensa em fazer o curso de Educação Física para aliar a capoeira, com isso criando um projeto social para quem tem alguma deficiência física.

Box: A lei faz sua parte

A prefeitura de São Bernardo do Campo é a mais avançada no cumprimento das leis relacionadas ao deficiente físico no ABC. A cidade é a única que conta com um Centro de Referência para a Pessoa com Deficiência. O órgão funciona dentro da Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania, mas atua em conjunto com outras secretarias da prefeitura, tais como: habitação, transportes, obras, saúde. O Centro de Referência é um local onde a família e os próprios deficientes podem conhecer todos os serviços e projetos oferecidos pela prefeitura para facilitar a vida daqueles que nasceram com alguma limitação física. As únicas exigências para cadastro nos projetos e atendimento no Centro é que o deficiente seja morador de São Bernardo.

Além do Centro de Referência, a cidade conta com o Conselho Municipal para assuntos da pessoa com deficiência. É um órgão criado para unir a sociedade civil e governamental na discussão em busca de melhorias para a vida do deficiente físico e mental. Qualquer pessoa pode participar das reuniões mensais e dar sugestões, fazer denúncias e reclamações para a Prefeitura.

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ESTA REPORTAGEM FOI ELABORADA POR CIDO COELHO E CAMILA GALVEZ.

Cido Coelho
Enviado por Cido Coelho em 12/12/2006
Código do texto: T316142
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