Todas as Marias

Eu sou Maria. Tenho o cabelo amarelo e antes era mais longo que o de minhas amigas, até que durante uma das minhas sonecas da tarde na creche, uma menina cortou todo o meu cabelo enquanto eu estava dormindo. Quando acordei, me senti mais leve e não tinha tanto calor como antes. Me olhei no espelho e gostei muito, meu cabelo estava como o de Vinícius. Mas a tia Débora não pareceu gostar muito e perguntou quem havia cortado, Giullia se levantou muito contente e disse “É o meu primeiro corte como ‘cabelelela’”, fui até ela e disse que adorei, mesmo assim a tia pareceu não gostar e ligou para nossas mães.

Minha mãe apareceu para me buscar discutindo com a mãe de Giullia e quando me viu disse a ela “Olhe para isso! Ela se parece com um menino” e eu falei “Eu sei, mamãe! Não é legal? Eu adorei!”, mas ela não me escutou e continuou discutindo, não entendi o porquê, eu estava tão bonita...

Depois de algumas tentativas de penteados com lacinhos e tiaras, eu e minha mamãe fomos ao shopping e durante as compras encontramos uma loja de brinquedos da qual eu quis entrar. Na loja havia muitos carrinhos de controle remoto, mas nunca gostei muito, preferia os aviões (que papai nunca pôde comprar pra mim por causa do preço), mas naquela loja havia um carrinho com vários detalhes em verde, minha cor favorita. Pedi o carrinho à mamãe, mas ela não quis me dar, disse que era brinquedo de menino, assim como sua cor e me pediu pra escolher um conjunto de brinquedos de cozinha para brincar, me disse que poderia cozinhar para ela, mas eu nunca gostei de cozinhar, nem de fazer as coisas que mamãe sempre fazia, queria fazer as mesmas coisas que papai; dirigir, trabalhar e ter dinheiro pra poder comprar quantos aviões (e carrinhos verdes) eu quisesse.

Eu sou Maria. Sou de uma família tradicionalíssima do Rio de Janeiro, com direito a pai, mãe, avôs, tios, primos e um irmão gêmeo. Em parte, não tenho problemas com o meu irmão, apenas o que quaisquer outros teriam, mas minha família me impõe certas coisas que a ele não impõem.

Há algumas semanas, recebi um convite para o novo time de futebol feminino do clube onde meu irmão praticava o mesmo esporte, me animei com a ideia de uma nova prática de exercício, mas quando a notícia chegou a minha avó e mãe, simplesmente, decidiram me impedir de qualquer forma, e mais, me impuseram que praticasse aulas de ballet clássico com a justificativa de que não me machucaria, e que futebol é um esporte bruto, de contato, onde só pode ser praticado por homens. Meu pai, avô e tios deram risada quando souberam do convite, gargalhando e proclamando que mulher é um ser incapaz da prática de esportes como esses, dizendo ser “o sexo frágil”. No fim, conseguiram me impedir de praticar o esporte, pois precisaria de autorização dos responsáveis, mas fui incapaz de aceitar o ballet, aleguei que da mesma forma que me machucaria no futebol, a dança acabaria com meus pés, e já não sou mais tão nova para conseguir a flexibilidade necessária.

Todos nós esquecemos essa história com o tempo, mas um ocorrido me fez relembrar o sentimento vivido naquele dia; Eu e meu irmão ficamos durante um final de semana sozinhos em casa devido a uma viagem de negócios de nossos pais, e como bons adolescentes que somos, não fizemos mais que comer e dormir, iriamos arrumar tudo algumas horas antes de chegarem, mas acabaram aparecendo em casa mais cedo que o esperado. Meu irmão estava dormindo em cima de latinhas de refrigerante e com um pedaço de pizza no abdômen, e eu sobre algumas roupas em meu quarto. Quando nossos pais apareceram, vieram imediatamente ao meu quarto, me culpando por toda a bagunça, julgando meu irmão como vítima, por eu não ter cuidado bem dele e tê-lo deixado em uma situação precária, sendo que, primeiramente, nem metade daquela bagunça tinha sido feita por mim, mas por ele e também, nas mesmas condições que tenho de fazer as coisas por ele, ele tem de fazer sozinho. Argumentei isso a meus pais e comentaram entre eles “Nossa filha nunca arranjará um bom marido...”.

Eu sou Maria. Desde a infância sonhei em defender os direitos humanos com plenitude, e me preparei a vida inteira para o momento em que pudesse me tornar uma grande advogada. Graças a uma vida inteira de estudo árduo, passei em segundo lugar no ranking geral numa das faculdades mais conceituadas do Brasil, ficando atrás, coincidentemente, de uma de minhas colegas de estudo.

Conclui meu curso de direito com maestria, fui uma das melhores da classe e recebia ofertas ótimas de estágio graças à indicação de professores, do qual me elogiavam, mas isso não me bastava, eu consegui chegar até o topo e acreditei que poderia voar, e eu realmente poderia.

Prestei para o concurso mais concorrido do estado de São Paulo, fiz a prova aplicando toda uma vida numa folha de papel e entreguei meu coração nele. Tempos depois, recebi a ligação com o anúncio de que havia passado no concurso em primeiro lugar! Senti-me realizada, e estava à um passo de ter o que sempre esperei. Havia apenas mais uma prova, a entrevista, que selecionaria os cinco melhores candidatos de cerca de cem aprovados pelo concurso, como era a primeira na colocação, me senti segura e fiz a entrevista com o chefe da empresa com tranquilidade e firmeza, da melhor forma que uma entrevista poderia ser feita eu fiz a minha. Estava segura, firme de mim, nada poderia dar errado.

Esperei a ligação por tempos e ansiosamente, até que numa sexta chuvosa, meu mundo caiu. Não havia sido selecionada, pois a advocacia visava à busca por advogados homens, e não mulheres, por melhores que elas sejam.

Tudo o que fiz por minha vida profissional, foi o melhor para qualquer currículo de um advogado, tudo o que fiz foram escolhas; de estudar mais, de escolher a melhor faculdade, a melhor empresa, e justamente por algo que não pude escolher, não fui escolhida.

Eu sou Maria. Não me vejo como alguém diferente, tem tantas iguais a mim, com mesmo nome, mesma dor, mesmo financeiro, mesma profissão. Pego três ônibus de ida para a casa de minha patroa, no abarrotado do ônibus respiro fundo e penso nas três bocas que coloquei no mundo, e nessas horas de aperto sinto sussurras de calúnias em meu ouvido e mãos em meu corpo. Respiro fundo e penso nas três bocas que coloquei no mundo.

A vida é rotineira, acordar antes de o galo cantar, chegar já cansada à casa da patroa, limpar, limpar, cozinhar, limpar, ir embora e morrer. Morre-se todos os dias, e todos os dias, se nasce de novo. A vida não faz mais sentido pra você, mas quem pra ama, pra quem depende do seu suor para viver, e cada gota vale o esforço.

Dia desses, tive que ficar uma hora há mais no trabalho, pois iriam demorar a chegar, não poderia deixar a criança sozinha, meu patrão chegou antes de todos, assim que chegou perguntei se poderia me dispensar, ele disse que não, que precisaria fazer mais um trabalho pra ele e se não fizesse poderia dizer qualquer mentira sobre mim, ela acreditaria. Logo entendi sua intenção e tentei fugir, mas ele me puxou para a lavanderia onde seu filho pequeno não poderia ver ou ouvir, segurou minha boca, e mais uma vez, respirei fundo e pensei nas três bocas que coloquei no mundo.

Eu sou as Marias! De todas as dores e socorros. Sou sua mãe, sua filha, esposa e amiga. Sou a mulher que ama e também a que odeia. Nasci com a dádiva de carregar em meu ventre o novo presidente, de dar em mim nova vida, semeá-la dentro e fora de mim. E não peço reverência aos filhos meus, mas suplico: Igualdade, por favor, igualdade. E de todas as Marias, serei sempre uma: Serei mulher!

Lu A
Enviado por Lu A em 15/12/2013
Reeditado em 22/12/2015
Código do texto: T4613302
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