CHICO BUARQUE, CONSTRUÇÃO.
Chico construiu e desconstruiu muito. Sua belíssima canção, Construção, enuncia de maneira precisa a angústia daqueles que trabalham na construção civil, subempregados e desvalorizados. Eis a obra:
"Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague"
- Construção, Chico Buarque
- Tal manuseio da linguagem, tal habilidade de se jogar com o idioma, é digno de um gênio. No começo da música, percebe-se que a última palavra de cada verso é uma proparoxítona. E o que isso quer dizer?
As proparoxítonas, segundo nosso idioma pátrio, são obrigatoriamente acentuadas. É possível inferir a sutileza da sugestão nos dada pelo autor, que tenta mostrar a compulsoriedade de manutenção daquele status quo, ou seja, os pedreiros (que é o caso, mas vale para a classe 'trabalhadora'), são obrigados a se comportar daquele jeito, se sujeitar àquelas condições, não há escolha.
Só joga com a linguagem quem a domina. E isso Chico fez com primazia. Mas, para muito além do aspecto estético da obra, existe o que há de mais importante nela: a mensagem.
A mensagem é uma forte crítica social, que transcende em muito a condição da classe trabalhadora (pedreiros) em evidência. Ela é válida para todos aqueles que são explorados por esse sistema, deixados de lado, menosprezados, esquecidos.
Nós, como humanos, temos a responsabilidade de tentar mudar um pouco desse status quo e não apenas desejar que "Deus lhe pague", pois é muito simples transferir uma responsabilidade ao invés de assumi-la e tomar providências para mudar a situação.
A mudança começa na mentalidade de cada um de nós, como indivíduos. Quando começarmos a ter uma visão mais cooperativa e menos competitiva as coisas irão começar a melhorar progressivamente. Vale a tentativa!