A igrejinha de São Benedito

A igreja de São Benedito ficava de frente a pracinha do bairro em que nasci, a Passagem.Árvores de amendoeiras ladeavam o

largo e sombreavam os antigos bancos de madeira pintados de azul.

Os mais velhos se sentavam ali para conversarem e recebiam a fresca de um ventinho nas tardes mornas do verão cabofriense.

Dona Maria, velhota e magrela fechava com dificuldade portão de ferro gradeado da sua casa de esquina ,porém num piscar de olhos rumava em direção ao seu banco da praça ,cativo e costumeiro.

A conversa corria solta e logo a pracinha se enchia de risos, algazarra das crianças um ou outro casal de namorados e dos homens que chegavam da pescaria ou do trabalho no centro da cidade.

O prédio da igreja é uma construção colonial, todo caiado de branco como ondas do mar.Construído pelos antigos moradores descendentes de escravos, pescadores do então pequeno vilarejo. Mantinham a porta fechada.Uma grande porta azul e branca de madeira.Tão alta que ficávamos horas olhando os detalhes daquela porta imaginando a força que se faria para abri-la nas missas matinais de domingo e na hora da Ave Maria. As vezes a porta parecia estar emburrada, zangada com o falatório e folia em frente a igreja.

Estacionávamos as bicicletas e ficávamos ali absortos com aquele azul igual ao céu,nos perguntando a razão de uma porta tão grande. Hora e outra o galo de metal de cima da igreja mudava de posição.O povario na praça ensaiava as previsões metereológicas e dava nomes aos ventos. Lembravam histórias do mar e de tragédias de ventos fortes , tempestades de verão.

A conversa alheia chamava nossa atenção entre uma volta de bicicleta e outra, parando aqui e ali , em torno da pracinha. Isto nos dava o panorama dos assuntos do bairro.

_vai casar. Dizia, com certeza, Dona Leonina.

_Está grávida? faminta de notícias a boa, cobra,a velha Dona Maria,que não perdia uma deixa.

_Diz que não.Quem acredita? Já vinha Dona Hildinha, com ares de quem sabe além do conhecido.

Noutro ponto , no bar de seu Ari. Ah!Aquele bar cheio de balas e picolés de framboesa em formato de um foguetinho, da Yopa. Tinha um refrigerador cheio de portas.Comprávamos ali a grapette só para ver uma das portas se abrirem. Parecia um cofre com tesouros deliciosos. Meus primos diziam que os defuntos ficavam ali e eu queria ver um.

O jogo de porrinha iniciava a gritaria .Todos os olhos se voltavam ao mais novo vencedor ou ao embate que se formava.Uma cachaça alimentava a alegria. Os mais novos pediam Brahma, meu avô ficava com a tradicional branquinha.

Meu primo , mestre em estripulias,pulava o muro por trás da igreja e me trazia as rosas mais brancas que eu já tinha visto. Ela florescia em cachos em pleno verão. Saía, coitado , arranhado pelos bouganvilles coloridos deitados sobre o muro.

O prazer de roubar a flor, o coração batia forte!

Lourdinha, minha prima, a mais velha de todos nós, não se encantava tanto com os doces que conseguíamos arrancar do meu avô,nem das flores roubadas no quintal da igreja.Seu interesse naquele verão estava num rapazinho. Nem era tão bonito. Um menino moreno , magro e com espinhas no rosto, mas tocava violão sentado na calçada, em frente a casa da avó dele. Suas músicas eram diferentes daquelas do programa mais assistido, o Chacrinha. Ele gostava de bossa nova.

A tarde caía lenta. Umas muriçocas começavam a incomodar.Um tapinha aqui e ali em si mesmo e nos outros e para nós, a criançada , era uma farra ver por cima da cabeça alheia aquele enxame de mosquitos desnorteando o velho ou o casal de namorados.

Às seis da tarde o sacristão tocava o sino. Hora da Ave Maria.Dona Maria tirava seu véu de rendas tão clarinho como as nuvens no céu nos dias de verão e cobria a pouca cabeleira também branquinha e com seus cambitinhos seguia faceira para a igreja de São Benedito.

A pracinha silenciava. O burburinho dos homens se confundia com as rezas cantadas , os salmos responsoriais.Os bares em volta, do seu Ari,a boate Aruanda,o bar do cigano Stênio ,semi cerravam as portas.

O padre alemão , gordo e vermelho, chegado num carro preto iniciava o serviço.

As crianças não recebiam a liturgia impressa , pois o padre achava que não sabíamos ler e por mais que tentássemos falar o contrário ele não nos entendia. Sorria , bagunçava nosso cabelo,num afago com aquelas mãos enormes e dizia:

_ Coitadinhas, no saber ler.

E ria cordial e manso, o que nos deixava mais aborrecidos ainda,contudo logo o sacristão deu nossa ficha e fomos convocados para as aulas de catecismo.

As bicicletas caloi ficavam sobre o canteiro de margaridinhas do lado esquerdo da igreja, o que dava acesso a Rua Almirante Barroso.

Minha prima Lourdinha nos beliscava e apontava a imagem de São Benedito no altar.Os mosquitos não davam trégua e queríamos subir a escadinha da sacristia para ver o sino no alto da pequena torre e a pracinha lá de cima.Ela não deixava.

Para nossa sorte após o serviço o padre nos permitia ficar, recolher a liturgia que servia para toda a semana e ainda comíamos com ele na sacristia o que um fiel levava de agrado ao pároco. É claro, não perdíamos a oportunidade de pelo menos tocar as cordas pesadas que balançavam o sino , para desespero do sacristão Luizinho.

Soube, anos depois, que Luizinho se converteu ao protestantismo, pois se apaixonara por uma moça crente. Casou e mudou do bairro. Nesta época nem tínhamos mais o bonachão padre alemão.

A nossa idade era da primeira comunhão. Ainda usei o catecismo de mamãe todo em madrepérola. Ela guardava o tercinho também, cor de ostras e o santinho da comunhão.O tercinho ela não me deu, disse que foi benzido e muito usado.A aulas de catecismo eram no domingo de tarde.

Como era menina não podia ajudar na missa.Via o padre escolhendo os coroinhas e eu ali , de bico ,ao lado da irmã Teresa, lá do convento das carmelitas.

O padre gostava de apertar minhas bochechas e despentear minha cabeleira preta, a custo arrumada com óleo de ovo Glostora.Era trançado feito uma Rapunzel mirim e moura. Uma franja enjoada fazendo cócegas no nariz.Eu era moreninha, sombrancelhas enormes,neta de um português cigano e de uma descendente de escravos africanos que há muitos anos estavam naquela terra.

Meus primos também frequentavam a igreja de São Benedito,mas faziam as aulas de catecismo na matriz, Nossa senhora D`Assunção, a padroeira da cidade. Minha tia rica era devota.

Vovó e mamãe gostavam do santo pretinho, São Benedito. Chamado de o santo mouro, assim como eu. Só não era chamada de santa, mas de "timbingue", pela minha avó ou de "curisco" pelas minhas tias, boas demais para me apelidarem de "capeta". Dizem que eu fui levada.Não acredito muito.Eu era só criança!

São Benedito não sabia ler ,nem escrever, contava esta história a madre Teresa, nas aulas de catequese .Dizia que o santinho tinha o coração bondoso e se preocupava com a fome dos seus semelhantes e não se omitia. Desenhava um São Benedito destemido,corajoso e muito sábio.Contava que São Benedito tirava da cozinha do convento onde servia a Deus mantimentos e os escondia sob o seu manto para distribuir aos pobres.

Ela nos falou de um milagre:que uma vez surpreendido por seu superior no convento e inquirido por ele do que levava no manto, São Benedito disse que eram rosas e ao mostrar o que havia sob o manto, lindas rosas apareceram no lugar da comida.

As histórias contadas por Madre Teresa enchiam nossos corações de ternura até a hora abençoado de ir para casa e tomar o café da tarde e esqueciámos a generosidade de São Benedito na disputa pelo pedaço maior de bolo de fubá ou broa de milho.

Ele andava descalço pelas ruas, dormia sem cobertas.Era assim que nós fazíamos nos dias quentes de verão.Ao passar em frente a igrejinha de São Benedito nos sentíamos menos crianças e mais

anjos com nossos pés descalços fazendo planos para o futuro, sair da cidade, ser astronauta, cientista, artista de televisão , viajar por todo o mundo, voar... não entendíamos o que era caridade.

No entanto a tarde caía e nos envolvíamos nas conversas fúteis da pracinha.

Dia 04 de abril era a festa do nosso padroeiro. Em frente a igreja se assava sardinha na brasa, distribuída para quem quisesse, oferta dos pescadores e devotos de São Benedito.As beatas vendiam bolo de milho com ki suco de uva. Tudo arrumado em bancas improvisadas cobertos com delicadas toalhinhas bordadas ou de renda de bilro.A pracinha , nesta época,se enchia de folhas avermelhadas das amendoeiras.

Sob o altar da igreja ficava um barco de pesca. Meu avô era pescador, meu tio era pescador eu queria ser pescadora. Mulher não podia ir para o mar.Aquele barco sob o altar fazia minha imaginação navegar por águas bravas em noites de tempestades de verão,por calmaria até encontrar uma garrafa com uma mensagem importante ou quem sabe um segredo, uma descoberta.

Eu conhecia a sensaçao da rede cheia de peixes brilhando com a luz da lua quando pescávamos na lagoa, no canal de Itajuru.Gostava de ver o camarão pulando da rede de arrastão ou do limo dos criadouros, mas não podia sair de barco para alto mar, nem quando crescesse. Era uma injustiça que colocava nas mãos de São Benedito durante as missas dominicais.

Minha avó contava que a igreja de São Benedito foi construída porque os negros não podiam frequentar a mesma igreja dos brancos. Acho que por isto escolheram o santo pretinho.A porta azul e branca tão grande como imaginávamos naqueles tempos deve simbolizar o coração de quem construiu a igrejinha. Hoje qualquer um pode entrar nela.

Em volta da igreja havia muitas casas antigas , que estão por lá ainda,cujas telhas foram moldadas nas coxas de negras escravas. Minha avó era uma mulatinha, pequena e birrenta por quem meu avô português quedou de paixão assim que viu! Ela falava assim nas muitas tardes na pracinha do Largo de São Benedito.Ela conhecia a história de cada casa.

Estas histórias me encantavam.

O chão de pedra, a parede caiada, o barco sob o altar e o Santo Mouro, contrastavam com a riqueza da Matriz, toda dourada.Embora branquinha a igreja de São Benedito parecia um raio de sol, um raio de luz que ilumina até hoje a minha vida.Até pensei em ir para o convento,mas senti saudades de casa.

Madre Teresa foi uma conselheira especial. Fiquei com ela uns dias no hospital Santa Isabel, quando eu já era uma mocinha. Realmente não tinha a vocação que imaginei naquele verão.

Fiz a primeira comunhão e me senti uma santinha no vestido branco, rosto de bochechas avermelhadas pela excitação e alívio sem os cabelos pretos e grossos caindo nos meus olhos, pois estavam cobertos do veuzinho, semelhante da Madre Teresa.

O vestido branco ia até a altura dos joelhos,no barrado bordadinhos de pequenos lírios brancos em ponto alto amenizaram a dor de estar ajoelhada no chão de pedra da igreja.O vestido tinha também detalhes em renda e minha avó nos fez lencinhos bordados com uvas e trigo onde com a delicadeza de mãos infantis cobrimos nossos catecismos até a hora em que foram abençoados junto com os tercinhos.

Diante do altar , sob o barco , meio que de ladinho tirei a foto da primeira comunhão.São Benedito parecia sorrir para a criançada que se esforçava para manter o comportamento exemplar, feito anjos,no entanto estávamos muito preocupados com o gosto da hóstia e pensando na festa atrás da igreja.

A missa nos parecia interminável e no momento esperado ansiosamente, com custo engolimos a hóstia com uma dó de doer não se sabe onde, aquela dor no peito , achando que era um pedacinho do corpo de Jesus e ele estaria sofrendo.

Mais um verão se passou. Depois muitos outros. Neste eu tinha meus 9 anos ou 8... Faz tanto tempo e faz tão poucas horas, parece que foi ontem!