Memória e Inteligência
 
Luiz Carlos Pais
 
 
O interesse em estudar relações entre memória e história leva a destacar neste texto alguns aspectos fundamentais da memória individual, antes de focalizar a memória coletiva como se faz necessário priorizar na produção de fatos históricos e sociais. Além do mais, essa referência à dimensão subjetiva está na base da objetivação como dinâmica da abordagem científica na história. A complexidade da memória individual, como um amplo tema de estudo, decorre da sua própria composição multidisciplinar e da necessidade de exercitar o diálogo entre diversos campos de conhecimento, tais como psicologia, educação, fisiologia, sociologia, cultura, psiquiatria, neurociências, entre outros. Todos esses domínios são hoje redimensionados pela inserção cada vez mais intensa, qualitativa e não estruturada dos atuais recursos tecnológicos digitais da informação e comunicação.
 
Diante da amplitude do tema acima esboçado é conveniente retornar ao esforço de pesquisa liderado por Jean Piaget, na década de 1960, cujos resultados mostraram a existência de estreitas conexões entre memória e inteligência de crianças que realizaram várias atividades estruturadas e planejadas pelo chamado método clínico. Ao tratar da inteligência como noção fundamental do processo cognitivo, é preciso observar que uma primeira abordagem permite apresentá-la como a capacidade de resolver problemas, no sentido amplo do termo, cuja solução requer certo esforço do indivíduo nas atividades integradas de recuperar informações e utilizá-las na criação de estratégias e procedimentos articulados com a finalidade de resolver uma questão desafiadora para ele. Esse problema assume um estatuto desafiador para o indivíduo que assume para ele a tarefa de resolvê-lo e para o qual ele não tem ainda uma solução imediata. Multiplicar dois números de dois algarismos não será problema algum para crianças com idade inferior a quatro anos, pois essa atividade não pertence ao mundo real dessa idade, excluindo casos excepcionais.
 
Jean Piaget e Barbel Inhelder mostraram a importância da inteligência na aquisição da memória por crianças de diferentes idades que foram levadas a resolver os referidos problemas planejados em uma situação de laboratório, fora do contexto da vida normal do cotidiano infantil ou mesmo escolar. Aspecto esse que, posteriormente, abriria outra frente de pesquisas realizadas por seus sucessores e críticos que consistiu em minimizar a importância atribuída à estruturação precedente das situações. Insere-se nessa linha de pensamento toda uma vasta corrente pós-estruturalista que ampliou o método estruturado, priorizado pela equipe piagetiana. Essa última direção  reforçou pelo menos um traço marcante que foi levantado por Piaget, enquanto redimensionou outros aspectos do método construtivista. Esse traço consistiu em comprovar a importância do aspecto ativo e da interação no desenvolvimento da inteligência infantil. Quanto mais qualitativas forem as ações e os procedimentos realizados pela criança, na resolução de um problema, maior será também a função da inteligência na aquisição da memória.
 
Essa linha acima sinalizada abriu espaço para o método construtivista, cujo diferencial em relação ao método catequético e outros modos de aprender baseados na repetição, consiste em levar a criança a vivenciar situações mais qualitativas, onde ela possa interagir com o objeto do conhecimento e não apenas “receber conhecimento” de uma suposta fonte privilegiada. Da mesma forma como a exterioridade do objeto é capaz de impregnar informações sensitivas e perceptivas no indivíduo, este é levado a realizar, por sua própria vontade, ações que visam apreender o objeto. É um caminho na direção da produção do conhecimento, com duplo sentido, isto é, do objeto para o sujeito e deste para o primeiro. O sujeito passa a assumir um papel muito mais ativo no desafio da aprendizagem individual.
 
O próximo passo que fez avançar a história da aprendizagem e desvelar um pouco mais o fenômeno cognitivo foi a inserção imponderável da dimensão social e coletiva. Como escreveu o famoso autor, nenhuma pessoa é uma ilha isolada e está sempre em conexão com outras pessoas. Mesmo que essa conexão nem sempre apareça com tanta clareza aos sentidos externos do corpo. Vygotsky foi um dos pioneiros que passaram a destacar a importância das interações sociais no desenvolvimento de modo geral, na constituição das bases iniciais da inteligência, da memória e de todos os legados que a humanidade produziu coletivamente. Não há como deixar de retornar aos sinuosos caminhos da história, ciência dos homens inseridos em suas instâncias sociais e temporais.