UM CÁLICE DE CICUTA

espero que jamais seja tarde

sobre sempre o tempo necessário,

o emissário negro se atrase

e possamos nos reconciliar com nossas renúncias,

as denúncias de que amamos pouco sejam retiradas

- amaremos tanto que esqueceremos o que é amor,

as desculpas que pedimos sejam ignoradas

- fizemos o que fizemos, não há o que refazer;

as dores que causamos sejam recuperadas

- tudo é dorido, pensar dói, não se acaba,

as palavras que proferimos sejam ouvidas

- não pedimos que sejam compreendidas, apenas ouçam, ouvidos moucos, ouçam!

e se já for tarde, fiquemos um pouco mais

o arroz vai queimar

o trem vai sair

a musica vai acabar

o dia vai escurecer

e nós aqui, entre um gole de esquecimento e uma porre de isolamento

o tédio engrandece uma vida,

o que eu fiz, o que eu não fiz, o que eu quis?

planos para o passado alimentam a alma vazia

a alma que dói, dor de ter vivido cedo

cansado cedo, amado sempre

perdido no quando...

eu quero voltar a medir meu tempo pela emoção

por aquela sensação de arrogância e ambição e desespero

de quem não espera,

estes a morte não alcança, eles vão à lança

trespassados, transidos, translúcidos

sentados à poltrona de uma ampla varanda burguesa

à tarde, vento morno, sol poente avermelhado

parece poesia, quem vê aparência

nada sabe da essência inconformista,

do que não fala o que não escuta

este é o poeta

ai dele!

ai dele!

que jamais seja tarde

para um brinde de cicuta.

(este poema nasceu dias atrás, termina hoje com uma referência à morte de Sócrates, meu maior ídolo no futebol – tinha técnica, tinha cultura, tinha atitude, pensava – eu palmeirense sofria vê-lo no maior rival, uma dialética esportiva, talvez ele diria, com um toque de calcanhar para driblar o lugar comum)