FUNDAMENTOS BÍBLICOS DE UMA ÉTICA ECOLÓGICA. In: Revista de Estudos Bíblicos: Exigências éticas na Bíblia. Petrópolis –

TEXTO: FUNDAMENTOS BÍBLICOS DE UMA ÉTICA ECOLÓGICA. In: Revista de Estudos Bíblicos: Exigências éticas na Bíblia. Petrópolis – RJ: Editora Vozes, 2003, nº 77

AUTOR: GARMUS, Ludovico.

Número de páginas: 20 – p. 9-28.

O autor inicia seu texto mencionando o apelo feito pelo Prof. Lynn White Jr., por ocasião da Assembléia anual da Associação Americana para Desenvolvimento da Ciência, em 1966, para que seja modificada a concepção de natureza e missão humana respeito à mesma, de base religiosa (Gn 1,26-18), adotada na atualidade. Lynn argumentou que: estando a ecologia condicionada pela religião, o cristianismo ocidental tem exercido sua influência a partir de um antropocentrismo inédito na historia da humanidade e do dualismo entre homem e natureza, em contraste com as religiões asiáticas (com exceção do zoroastrismo) e o paganismo antigo; é necessário encontrar uma nova religião que reveja as antigas concepções; a espiritualidade franciscana oferece uma alternativa cristã para a relação do homem com a natureza e São Francisco de Assis deve ser adotado como patrono dos ecologistas. Diante de tal pronunciamento, as opiniões cientificas se dividiram. Ian L. MacHarg radicalizou a questão, denunciando o antropocentrismo cristão e propondo retorno ao paganismo ou religião dos índios americanos. Na mesma linha opina Arnold Toynbee, responsabilizando a tradição judeu-cristã pela crise ecológica.

Em seguida faz uma fundamentação teórica de caráter histórico, indo buscar na Idade Média a concepção de perfeição do Universo geocêntrico, hierarquizado antropocentricamente. Argumenta que nossa cosmovisão sofreu mudanças, a partir da desmistificação do cosmos e perda da influência das concepções religiosas antigas. O atual homem científico instrumentaliza para o seu desfrute todas as coisas, que estão classificadas e decompostas. A ciência pós-moderna vem se reaproximando da religião e teologia, no mínimo reconhecendo seu valor.

A espiritualidade de Francisco de Assis vem sendo corroborada pela ciência moderna, que revela uma integração visceral entre o homem e o Universo, pois aquele é “pó das estrelas”. A cosmologia encontra a tradição bíblica ao expor a dinâmica universal, traduzida em termos teológicos em contínua atividade criadora de Deus.

O autor passa então a realizar a releitura exigida pelos apelos atuais em prol de uma relação humana com o Universo mais reverente e integradora. Para tanto adota, como fundamentação bíblica, a ética israelita na relação com a natureza registrada no Pentateuco, Salmos e Livro de Jó.

Inspirado no livro “A creator and creation: nature in the worldview of Israel”, de Ronald Simkins, o autor prefere a terceira linha de pesquisa das que apresenta:

a) pesquisar como Israel influencia o meio ambiente;

b) pesquisar como o meio ambiente influencia o desenvolvimento religioso e cultural dos israelitas;

c) pesquisar o comportamento de Israel diante da natureza.

O modelo global ecológico trata de interrelacionar as três linhas, que retornam umas sobre as outras, em círculo:

a) o ambiente natural transformado em recursos naturais,

b) desenvolvimento religioso e cultural;

c) valores ambientais organizados em cosmovisão.

Assim, a capacidade de Israel na geração de energia e bens é determinada pelo nível cultural (sistema social e tecnologia) e condições ambientais físicas de que dispõe. Por sua vez, a produção de energia e bens pode causar prejuízos ambientais como erosão e desmatamento, o que exige desenvolvimento de novas tecnologias que novamente causam impacto ambiental. Desta maneira, o impacto ambiental causado por renovação tecnológica pode ter oferecido aos israelitas a oportunidade de produzir mais energia e bens e alcançar o desenvolvimento cultural resultante.

A cosmovisão é fator determinante da relação dos israelitas com o meio ambiente. Este o aspecto em que Simkins centraliza seus estudos.

Os pesquisadores apontam três alternativas como solução da relação humana com a natureza:

a) sujeição à natureza;

b) harmonia com a natureza;

c) domínio sobre a natureza.

Estas alternativas se fazem presentes em todas as culturas e variam conforme a preferência determinada por fatores contextuais. No Ocidente prevaleceu a terceira alternativa. Em tempos de crise ambiental recorre-se à segunda, usando, por exemplo, a reciclagem dos recursos que estão sendo utilizados. Com o advento da catástrofe, a primeira alternativa cai na preferência dos atingidos pelo desastre. Estas soluções são variáveis conforme sejam adotadas no grupo interno ou no grupo externo. No primeiro caso, a harmonia com a natureza é a preferida; no segundo a preferência recai sobre o domínio. No caso de um camponês que perdeu sua terra, é possível que a sujeição à natureza seja adotada.

Simkins alerta que é preciso evitar, no esforço de compreender a cosmovisão israelita, tanto o etnocentrismo quanto o anacronismo.

A cosmovisão inerente à Aliança no Sinai prefere a solução da harmonia com a natureza. No livro de Jô, a teologia retributiva inspirada nos termos da Aliança é criticada, e a preferência recai sobre a solução de sujeição à natureza. Quanto à ideologia real, as soluções adotadas alternam entre a da harmonia ambiental para o grupo interno e a do domínio ambiental para o grupo externo. As bênçãos e maldições da Aliança são válidas para o grupo interno. Jó e os excluídos ficam com a alternativa da sujeição à natureza.

Os termos da Aliança, segundo os exegetas, estão baseados em tratados de vassalagem dos hititas e assírios, que estão organizados como se segue:

a) apresentação do soberano;

b) recordação dos benefícios com que o soberano agraciou os vassalos no passado;

c) estipulações a serem seguidas pela vassalagem;

d) prescrições para conservação do texto sagrado e sua divulgação pública;

e) listas das testemunhas;

f) maldições e bênçãos que sancionam descumprimento e cumprimento do tratado.

Simkins ressalta que a lista de testemunhas da Aliança entre Deus e Israel é a criação inteira (Dt 30, 19; 4,26; Mq 6,1-2), pois a própria criação é a base desta Aliança. O bem-estar ou desequilíbrio da natureza são termômetros para o cumprimento ou pecado do povo no descumprimento das clausulas do contrato (Dt 11,13-17; 28,15-68; Lv 26,3-39; Am 4,6-0; 7,1-6; 9,11-15 Ez 34,25-30). Fica claro que o modelo adotado por Israel é o da harmonia com a natureza.

Na cosmovisão israelita, o mundo se divide entre Criador e criação; esta última se divide em humanidade e demais criaturas. Esta divisão é hierarquizada, tendo Deus acima da natureza e a humanidade acima do restante da criação. À semelhança de Deus, a humanidade é agente causal na dinâmica da natureza que, na relação de harmonia, também é agente causal em relação ao homem; e tudo é agente causal em relação a Deus, que por sua vez aceita mudanças provocadas pela ação humana sobre a criação, embora tudo Lhe esteja submetido (Gn 6,5-7; 18,,16-21; Ex 2,23-25; 3,7-9).

A relação com a natureza se diversifica no contexto da Aliança de Deus com o rei, com quem Deus tem uma relação de paternidade, comum no contexto do antigo Oriente Médio. A ideologia real tende ao domínio sobre a natureza por parte do homem, pois o rei, como representante de Deus, a ele se assemelha no domínio da criação, ainda que só a Deus caiba o domínio absoluto (2Sm 7,11-16; Sl 2,7-8; 89,3-4.9-11.22-25; 47; 93; 95-99) .

Embora privilegiando a relação de harmonia com a natureza, a ética israelita difere quando se trata do grupo interno e externo.

Ao tratar da ética israelita no âmbito do grupo interno, o autor se vale dos resultados de um estudo arqueológico realizado na região montanhosa da Palestina, em camadas correspondentes à idade do Ferro I (1200-100 aC), estudo que constatou que pequenos grupos de uma dúzia de pessoas, constituído de agricultores e pastores de gado miúdo ali habitavam. Ele relaciona a esta descoberta uma expansão populacional ocorrida à época de Samuel, Saul e Davi, que atingiu a região montanhosa e desceu para regiões mais baixas, provocando, sobretudo nas montanhas, erosão e empobrecimento do solo. A solução adotada foi a construção de terraços e descanso da terra - adoção em nível legislativo (Ex 23,10-11) -, práticas agrícolas que permanecem em uso na região. O uso de tração animal para aragem dos campos foi sendo introduzido gradualmente, dando lugar à expansão das propriedades – provocou conflitos sociais e ambientais que foram objeto de legislação (Ex 22,3; 21,28-36; Dt 22,1-4). Hebreus privados de sua terra acabavam por tornar-se escravos e a lei veio em seu socorro (Ex 21,1-11). Os animais ficaram sujeitos a cair em cisternas de pessoas negligentes e a lei contemplou tais situações (Ex 21,33). Para acampamento militar, temos a regra de higiene para derfecar (Ex 23.13). Vemos, em todos estes casos, o empenho do legislador em preservar, no grupo interno, a cosmovisão da harmonia.

A convivência com o grupo interno era incrementada, em regra, nas situações de conflito armado. Nestes casos, a destruição da terra do inimigo era total: corte de arvores para cerco e incêndio das cidades (Ez 26,7-9; Jr 6,1-8; 52,13; Jz 9,48-55); extração de madeira para construção de navios de guerra (Ez 27,5-7; 1Rs 10-,22; 22,49-50); e grandes construções (1Rs 5,15-7,12). Apenas as arvores frutiferas foram sendo poupadas por questão de utilidade para o grupo interno e ganharam status de preservação universal (Dt 20,19-20).

O significado de domínio em Gn 1,26-27 está contido em dois verbos do hebraico: “governar” (radah) e “subjugar” (kabas). O primeiro verbo tem o sentido de governar como o bom pastor, que conduz seu rebanho em segurança para mantê-lo vivo e saudável, segundo a ideologia real existente no Antigo Oriente Médio. O segundo pode ter como objeto um espaço geográfico ou um ser fraco como objeto e um outro forte, como sujeito. No caso de “imagem e semelhança” (tselem udemut), os hermeneutas recorrem ao Sl 8,6-9. O sentido da expressão denota uma investidura real, em que todo ser humano, e não só o rei é tido como representante de Deus diante da criação.

O autor sacerdotal vê a relação humana com a natureza como uma via de mão dupla: o homem a trabalha e esta lhe corresponde. Não se trata de uma relação utilitarista sem limitações. Inclusive porque o acúmulo de bens não é possível uma vez que homens e animais devem se alimentar das mesmas coisas (Gn 1,30). O homem deve respeitar a vida dos animais; só depois do dilúvio o consumo humano de carne passa a ser permitido (Gn 9,1-6). A dominação humana da terra denota gerir suas forças em prol da vida, a exemplo de Deus, o Criador. Por estar em lugar privilegiado na totalidade da criação, do homem também se espera maior responsabilidade: frente à natureza e ao Criador. No sábado o domínio é suspenso, é dia de repouso e liberdade para todo o Universo.

O livro de Jó traz uma cosmovisão alternativa àquela da harmonia estabelecida pelos termos da Aliança. Jô, na sua desgraça, e julgando-se inocente, questiona a teologia da retribuição e exige uma resposta de Deus. A resposta então vem num discurso que revela um Deus gestor de todos os espaços da terra, mesmo do mar e deserto desvalorizados e desprezados por Jó. Toda a vida selvagem é objeto da atenção divina, como os fenômenos metereológicos. Jó, perplexo, não tem o que responder e então assimila uma nova postura. Ele compreende que não apenas o que lhe parece importante o é para Deus, ele pode rever seus conceitos etnocêntricos e elitistas. E tratar suas filhas em condições de igualdade com os filhos, rompendo assim como muitos dos padrões de conduta de seu tempo. Jó conhece um Deus diante do qual a criação é um todo integral, sem fragmentações valorativas. Ele adota o modelo de sujeição à natureza, pois compreendeu que tudo se interrelaciona num fluxo de interdependência (conceito da ecologia atual). Em Jó o antropocentrismo é rejeitado. A Jó Deus revela a teologia da gratuidade.

O relato sacerdotal do dilúvio mostra Deus retribuindo a maldade humana, mas tem um desfecho javista que também se constitui numa crítica à teologia da retribuição: ao final Deus, mesmo sabendo que a humanidade continua com sua tendência al mal, resolve não mais destruir a criação (Gn 8,22). E então anula a maldição do solo (3,17), a sentença de Caim (4,11) e contempla Lamec nos desejos de seu coração a respeito de seu filho (5,29). Deus abandona a ira e privilegia o agir com compaixão e gratuidade. Ambos autores, sacerdotal e javista, concluem pela decisão de Deus de manter a vida na terra, preservando-a da destruição, numa Aliança com toda a criação e não só com o povo escolhido. A benção pós-diluviana é extensiva a toda a vida.

A conduta ética de Israel, calcada na harmonia com a natureza, nos termos da Aliança do Sinai, limita-se ao grupo interno israelita e aponta para uma democratização da ideologia real de dominação sobre a natureza. Em Jó aprendemos sobre a gratuidade de Deus; e a Aliança pós-diluviana é também uma manifestação da teologia da gratuidade. O autor conclui que ambas as teologias, da retribuição e gratuidade, no que diz respeito às relações com a natureza, são importantes objetos de reflexão para a vida atual. Sobretudo nossa responsabilidade de imitar a Deus na sustentação da vida e na preservação da natureza, como delegados do Criador.

Trata-se de texto da maior importância. O autor atinge seu objetivo de demonstrar que há muito mais elementos bíblicos do que aqueles que, na Modernidade, a burguesia mercantilista pinçou e impôs, com o apoio de setores religiosos, para dar sustentação ideológico-religiosa a sua atividade de acumulação capitalista e dominação étnica, privilegiando apenas seus próprios interesses. Não se trata de mudar de religião, mas de exigir das hierarquias religiosas posturas de autonomia frente aos poderes estatais hegemônicos, para que seja realmente possível construir a paz e a justiça. E sobretudo a dignidade eclesial para gerir a criação e defender a vida da opressão e destruição, cumprindo a tarefa que nos foi confiada, de delegados e filhos do Deus vivo. Para tanto, não se pode permitir que a integridade de uma ética ecológica e de justiça social seja fragmentada para proteger os interesses escusos, anacrônicos, etnocêntricos e antropocêntricos dos poderosos deste sistema em que vivemos e nos sentimos ameaçados de extinção, com o comprometimento da vida das futuras gerações.