Medicina e Literatura

Segue abaixo o prefácio do livro ALGO SEM GESSO, que eu e meu irmão lançaremos em setembro e outubro, em Vitória e no RJ. Nele o prefaciador antes de falar dos autores faz muitas e interessantes digressões sobre medicina e literatura.

Poesia e partilha do sensível: um prefácio-abraço

As relações entre literatura e medicina ainda não foram devidamente anotadas, sobretudo no contexto da literatura brasileira.

Se a vida literária no Brasil adquire caráter visivelmente sistêmico apenas no começo do século XIX, não nos espanta que justamente o iniciador do romantismo entre nós, Gonçalves de Magalhães, fosse médico. A este poeta devemos nada menos que Confederação dos Tamoios, marco do romantismo de viés indianista e tentativa pioneira entre os românticos de criação de uma epopéia nacional legitimadora de nossa independência cultural. Não é pouco.

Médico também foi Joaquim Manuel de Macedo, de quem lembramos ainda hoje, em visita a Paquetá, por conta das páginas edulcoradas, mas inesquecíveis, de A moreninha. Folhetinista notável, seu Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro e suas Memórias da rua do Ouvidor são marcos na linhagem dos cronistas do Rio antigo, lidos e relidos até hoje. Não deixa de ser curioso pensar como a posteridade se interessaria por sua tese na faculdade de Medicina, Considerações sobre a nostalgia, que tantas luzes parece lançar sobre certos aspectos da sentimentalidade da poesia romântica.

A lista dos que transitaram entre a medicina e a literatura é longa.

E o melhor: como se vê, desde o início, engloba escritores do primeiro time.

Seguiria elencando nomes mais ou menos conhecidos, como o poeta Jorge de Lima, autor da Invenção de Orfeu, poema de grande fôlego que o inscreveu definitivamente entre os mais expressivos criadores do século XX.

Ou Madeira Freitas, que atendia pacientes em consultório na Cinelândia ao mesmo tempo que assinava páginas satíricas e charges como Mendes Fradique – simplesmente um dos mais importantes e mordazes humoristas brasileiros do começo do século XX.

Idêntico testemunho faz Pedro Nava que, além de emprestar seu nome a biblioteca no Rio de Janeiro, se revelaria nada menos que o maior memorialista da literatura brasileira.

Sem falar em Guimarães Rosa, que estréia na literatura ainda estudante de medicina e é no exercício da profissão que começa a tomar contato com a dura realidade da ‘prosa’ que é a vida diária dos despossuídos. Certamente Guimarães Rosa – que, no final, deixaria a profissão, definitivamente conquistado pela literatura –, teve contato, em sua breve porém intensa experiência como médico pelo sertão, com o cenário que assombraria sua obra.

Ou ainda Helio Pellegrino, que, além de especialista em medicina psiquiátrica, integrou, junto a Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, o “Grupo dos Quatro Mineiros”, bons de prosa e poesia.

Se me estendo em demasia neste circunlóquio, introduzindo nomes aqui e ali, mais à maneira de um cronista mundano que de um crítico literário, é porque há uma circunstância cabal que me faz estar aqui. Meu contato com um dos autores desta charmosa edição que o leitor tem diante dos olhos se deu justamente por conta da medicina. E minha presença neste prefácio se deve a este testemunho de um contato pessoal, excluído de qualquer interesse pecuniário e que espero seja sempre renovado.

Assim, quem conheci primeiro foi o ortopedista e traumatologista Alberto Daflon Jr. Exatamente: foi o médico a quem conheci primeiro, numa situação grave em que ele pode mostrar seus talentos certificados por diploma. Na seqüência, o ortopedista me apresentou o poeta Alberto Daflon Jr. Poeta inédito, conhecido apenas por um rol seleto de amigos de sensibilidade afinada, seus poemas me eram confiados em “manuscritos de computador”, que líamos juntos quando de minhas visitas ao consultório. O conhecimento com um e com outro progredia. E os poemas circulavam, alguns chegavam discretamente por e-mail, e assim nos conhecemos melhor.

Alberto Daflon Jr. tem uma voz poética afinada pela linhagem coloquial – que é, na visão de grande parte da crítica autóctone, a dicção ideal para o fazer poético em terra brasilis –, não infenso à chama e à chamada do erotismo para o interior do texto. Parece-me que a escrita carregada de pathos o atrai com maior regularidade: ora introspectivo e confessional, ora reflexivo e contido, mas sempre atento à travessia precária e efêmera sobre as margens do real. E nisso é de se notar a maneira como consegue transpor em seus poemas a idéia de um eu lírico que se desloca tateante pelo mundo das palavras e dos afetos, que aprende no escuro o peso e a ressonância das palavras alinhadas num verso: a poesia se apresenta a Alberto em toda sua plenitude lúdica de descoberta e de inauguração do nomear. Importa ainda reparar como, mesmo sob tom intimista e em momentos de sentimento poético mais desfraldado, a dicção do poeta mantém a elegância, sem cair para o piegas, mantendo, ao mesmo tempo, a sinceridade de expressão e de emoção e, o que é melhor, estabelecendo uma relação de empatia com o leitor.

Foi através da medicina que conheci Alberto. E por Alberto – agora já revelado como poeta – conheci Fabio Daflon. Irmão de Alberto e também médico, Fabio me enviou por e-mail alguns de seus poemas, bem como links para sites de literatura onde milita, colaborando regularmente com versos próprios e com esforços sempre lúcidos de interpretação do fazer literário, mesmo o alheio. Édito, com algumas publicações trazidas na bagagem, Fabio é um poeta que ostenta surpreendente consciência das formas versificatórias. É de reparar como em Fabio a consciência das técnicas e dos procedimentos de criação não bloqueia nem a riqueza imaginativa nem a fluência de seu verso – que, ademais, é dotado de notável senso rítmico. Aguda sua sensibilidade poética, recusa-se tanto ao modelo pronto como ao supérfluo, resultando sempre em poemas bem torneados e sólidos, mas nunca adiposos. Seu horizonte é o da discreta e suave beleza, o poema como discreta e elegante jóia na qual forma e fundo se encontram. Consegue a proeza de ser eclético e manter ao mesmo tempo uma dicção própria e plena em verve.

Se Alberto é pathos, Fabio é ethos: combinação ideal, vasos comunicantes.

Reunir estes dois poetas, cada qual com dicção definida e visão distinta do fazer poético, foi menos um desafio que um resultado inelutável. E aqui são reunidos com a mediação visual de (NOME DO ILUSTRADOR), numa interessante combinação do icônico com o verbal.

A literatura entra no século XXI tentando adaptar suas tradições textuais às urgências dos novos tempos, das novas ordens que se impõem à super-estrutura. A contínua multiplicação de sites onde escritores de qualidade – mas sem qualquer intenção de se inserir no sistema da literatura-enquanto-mercadoria – trocam textos e leituras (criando e fomentando micro-ambientes literários totalmente fora do círculo vicioso do jornalismo cultural e dos meios acadêmicos) e a circulação de livros como este que o leitor tem em mãos são testemunhos de que é possível recolocar no horizonte a proposição de Lautréamont: A poesia será feita por todos. A palavra, a página de um livro pode ser este horizonte de projeção utópica: é preciso esperança, e isso a poesia detém o segredo de gerar.

Se os cínicos objetarão que paixões partilhadas não podem mover montanhas, convenhamos que é por esse modo que se corre o risco de dar nascimento a belos livros de poesia. Creio que apresentar esta colaboração entre dois irmãos e dois médicos é algo que se revelará promissor. E vejo isso não apenas como o primeiro vôo de Alberto (até aqui inédito) ou como a materialização de um ciclo (no caso de Fabio, édito). Vejo como o início de uma outra partilha do sensível que ambos passam doravante a reconhecer: o amor às letras. Da partilha fraterna do nascimento, da profissão e desse amor às letras – que este livro seja testemunho!

MARCUS SALGADO

Rio de Janeiro, março de 2009

Marcus Salgado
Enviado por Fabio Daflon em 29/08/2009
Reeditado em 18/04/2023
Código do texto: T1781636
Classificação de conteúdo: seguro
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