REFLEXÕES SOBRE O ENUNCIADO EM BAKHITIN

A obra Estética da criação verbal de autoria do lingüista russo Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, apresenta um importante capítulo dentre outros de igual valor, intitulado O enunciado, unidade da comunicação verbal. Nele o autor expressa forte crítica direcionada às teorias vinculadas à lingüística do século XIX no que diz respeito à linguagem e suas funções, utilizando-se do método indutivo, partindo assim de uma visão geral para a particular que se configura em torno do objeto que o mesmo recria em uma nova perspectiva: enunciado.

Dessa forma, começa citando a idéia de W. Humboldt, que segundo o autor colocava a função comunicativa da linguagem como acessória, isto é, em segundo plano, destacando a função criadora do pensamento cuja fórmula se expressa da seguinte forma: “Abstraindo-se a necessidade de comunicação do homem, a língua é indispensável para pensar, mesmo que tivesse de estar sempre sozinho”. No caso da escola de Vossler, esta destacava a função expressiva que tem a ver com a capacidade individual de cada um de expressar a língua. Outros focos diferentes sobre o objeto da linguagem surgiram que, para Bakhitin, traziam não “a ignorância absoluta”, como nas anteriores, segundo o mesmo autor, “mas uma estimativa errada das funções comunicativas da linguagem”. Assim esta outra focava o locutor, cujo destinatário era um ser passivo, um mero interpretador do discurso/mensagem do locutor. O autor apesar de não considerar tais esquemas sobre a linguagem errados afirma que estes se transformam em “ficção cientifica” quando se pretendem representar a realidade funcional da língua. A meu ver acredito igualmente que não há erros nesses esquemas, nem acredito em pretensões de serem irrefutáveis. Vejo-as como tentativas de acertos, dentro de um comportamento cientifico que são, e dessa forma buscam testar as partes de um todo para perceber a mais importante. No caso de Humboldt, acredito que sua tentativa foi a de encontrar a origem, a essência ou a morada dessa linguagem, o centro sem o qual não poderia existir a linguagem. No caso da teoria que centraliza o locutor, a idéia talvez seja a de que um locutor só de pensamentos não pode ser ouvido e, por conseguinte não ocorreria a comunicação e não existiria assim um ouvinte e/ou receptor, por isso acreditaram na importância deste, talvez assim a figura centralizada ou precursora do diálogo e, por conseguinte da comunicação, o que em meu entendimento, ainda limitado, não ver nenhum mal nessa busca. Além do mais ninguém só fala ou só escuta. Há um revesamento e é óbivio que o autor não deixaria de ter observado isso. Penso que o mesmo apenas realizou uma espécie de nomenclatura aos elementos envolvido no ato da comunicação para esquematizá-los. E, observando todos esses fatos, realizando uma analogia simples, da mesma forma que uma criança não domina o andar na primeira vez que se ergue e sim, um passo depois outro até que domine o caminhar (e isso não a impedirá de cair alguma vez, ainda que já adulta), assim é a busca pelo domínio de certo conhecimento sobre um determinado objeto. Tudo é tentativa e cada uma possui o seu valor. Quantas teorias caem para evoluírem? E a busca pelo cerne da função da linguagem não poderia ser diferente. Bakhitin também reflete que se ocorrer a compreensão de uma fala viva de um enunciado vivo pelo ouvinte e se este efetivar uma “atitude responsiva” esta pode ser ativa ou passiva. Ativa quando se materializa fonicamente, e passiva quando silenciada. Esta última é também considerada como compreensão responsiva retardada visto que o autor acredita que cedo ou tarde isso ocorrerá. No entanto, penso que nem sempre o locutor espera uma resposta imediata e algumas vezes nem espera essa resposta. Seu objetivo talvez seja apenas dizer. Além do que, quando o autor coloca o discurso lido e escrito dentro desse parâmetro é lógico perceber que nem sempre se poderá ter uma resposta imediata devido ao meio em que se materializa esse enunciado. E como classificá-la assim como retardada? E no caso do pensamento não seria algo também vivo assim como a fala? E até mesmo o silêncio parece às vezes gritar, sendo assim também um enunciado podendo o ouvinte ou receptor responder com o mesmo ou se pronunciar? Acredito que essa não seja a nomenclatura mais acertada para esses fatos. Mas uma coisa em que percebo, analisando esses juízos, é que um discurso, embora nasça no pensamento e aí se desenvolva, não pode assim servir de objeto de análise visto que não se materializou externamente no comunicação verbal. Continuando em suas análises o autor, percebe o locutor e ouvinte numa troca de papeis e mesmo o locutor seria de certa forma “um respondente” visto que não seria o primeiro a quebrar “o eterno silêncio de um mundo mudo”, com seu enunciado, que possui em si outros enunciados formando assim um complexo encadeamento de enunciados. Dessa forma, o pensamento de Bakhitin tenta provar a distorção (ou o não completo discernimento) que os esquemas sobre a comunicação verbal expressavam. O autor também chama a atenção para a utilização “incerta e ambígua” de termos como “fala” ou “fluxo verbal”, “fônicas”, e “significantes”, que são colocadas como fragmentações da língua e que inclusive tal representação materializa-se no discurso até de lingüistas e da Gramática da Academia. Tal discurso seria fruto de um conhecimento fragmentado que deixa vago até mesmo o sentido do que seria o discurso remetendo-o ao ato da fala, do enunciado ou uma seqüência destes, a um tipo de gênero de um discurso dentre outros. Assim Bakhitin explica que a fala só existe na forma concreta dos enunciados de um individuo; o discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma, além do que dentro da idéia de discurso expressa pela Gramática Acadêmica (de que o discurso se subdivide em orações e estas em combinações de palavras e estas por sua vez em sílabas que se subdividem em fonemas) não caberia a um discurso ser representado por uma expressão como “Ah!” (que pode ser um enunciado), por não conter em si todos os elementos citados acima. Dessa forma um enunciado pode ser um discurso, mas nem todo discurso pode ser um enunciado . Assim o enunciado é a unidade real da comunicação verbal e o discurso se molda à sua forma. Este pode ser desde uma simples palavra (breve réplica) até mesmo uma obra literária (romance, por exemplo) ou tratado cientifico . Sua fronteira é demarcada pela alternância das falas dos sujeitos no diálogo, no entanto contém um começo e um fim absoluto, pois antes dele há enunciados de outros e depois dele enunciados respostas dos outros. Em seguida o autor procura determinar a relação existente entre a oração e o enunciado. A oração como unidade da língua é de natureza gramatical, tem sua fronteira enquadrada em suas duas extremidades e representa um pensamento relativamente acabado visto que, tendo como contexto o próprio texto, esta se relaciona com as outras idéias do autor dentro do mesmo. Assim a relação da oração com o contexto trasverbal da realidade e dos enunciados dos outros é sempre indireta, por isso não tem a em si elementos que ativem uma atitude responsiva. No entanto, uma oração pode tornar-se um enunciado a partir do momento em que provoca uma resposta. Dessa forma adquiri novas especificidades, dentre elas, a alternância dos sujeitos falantes, o acabamento e a relação do enunciado com o próprio locutor e com os outros parceiros da interação verbal. O enunciado passa por duas fases inicias; a primeira é determinada pelas escolhas do locutor pelas suas particularidades de estilo e composição; a segunda corresponde à necessidade de “expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado”. Assim, tal capítulo expressa bem o foco de estudo que Bakhitin dedicou-se durante toda a sua vida quantas vezes discutido dentro do Círculo que recebeu seu nome; o de buscar, segundo a revista Nova escola de agosto de 2009, a “definição de noções, conceitos e categorias de análise da linguagem com base em discursos cotidianos, artísticos, filosóficos, científicos e institucionais”, dando ênfase nesse capítulo sobre o enunciado, célula, ou como mesmo ele nomeou, unidade da linguagem verbal. Sem dúvida é uma leitura importante que suscita inúmeras indagações o que é extremamente frutífero para o desenvolvimento de novos conceitos e reflexões que por sua vez contribuirão para a evolução do conhecimento a respeito da linguagem, suas funções e formas de acontecer.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN. M. O enunciado, unidade da comunicação verbal. In: Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 280-326.

REVISTA NOVA ESCOLA. Edição nº224, agosto de 2009.