Caro W:

Estava aqui a dar atenção ao conto escrito por sua sogra e me lembrando das palavras do velho Jung sobre o quanto artistas escritores podem dizer de suas psicologias. Nessa linha de raciocínio, bancando o psicólogo, acredito que o conto “A consumição”, a partir do nome, conta sobre a condição da autora a se consumir em sua necessidade de voar, de cair fora da situação de solidão em que atualmente se encontra.

Como artista, tenho muito isso, mas creio que todos nos sentimos um pouco (ou muito) assim. Não foi sem razão que muitos de meus primeiros trabalhos tiveram a ver com pássaros e voos.

No conto dela, a figura do mágico deve ser um reflexo de suas desconfianças de impossibilidades de realização desta sua tão deseja libertação.

Como todos nós, a autora precisa da frequência de boas companhias ao seu redor, sendo muitas imagens do conto reflexos de seu erotismo um tanto reprimido e de seus receios de ser castigada por seus desejos secretos pelas garras da “grande águia”, olho alado que tudo sabe e pune. Ou seja: sua sogra é uma pessoa absolutamente normal, embora, como todo artista, com grande poder de observação e imaginação.

Do ponto de vista estético, como lhe disse, fiz algumas revisões e ajustes na estória, mas não mexi em mais de 20% do texto.

No mais, é estimular seu talento para a Literatura e lhe fazer umas visitas.

O texto será publicado em minha página do Recanto das Letras, embora ainda sem referência ao nome da autora.

Grande abraço.

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A CONSUMIÇÃO

Depois de um dia turbulento, com o passado a querer invadir meu presente, a única coisa que desejava mesmo era chegar em casa para por as emoções em sossego.

Eram exatamente seis horas quando abri a porta. Respirei aliviada. Estava no meu refúgio, onde sou dona e rainha.

Incapaz de coordenar as emoções que turbilhonam meu cérebro, pus-me a tentar um relax. Com os olhos abertos, deitada na minha cama larga, deixei que a imaginação tomasse conta de mim.

Os ruídos da minha rua chegavam abafados. Um pássaro soltou seu canto diferente, que chegou até mim como um suave lamento. Aliás, nunca tinha ouvido esse canto. Conheço todos os pássaros que fazem festa nas árvores que rodeiam minha casa: os pardais barulhentos, que atacam em bando, os beija-flores raros – é certo, mas que pairam junto das florezinhas miúdas da trepadeira que invade a janela do meu quarto causando um doce e suave perfume no meu refúgio.

O vim-vim com seu canto longo e agudo espaçado por silêncios melódicos e outros e outros que não conheço, mas que fazem ponto permanente nas árvores do meu jardim. Eles percebem a solidão da minha vida e o silêncio da minha casa que, às vezes, a invadem e os pega de surpresa, voando tranquilos sobre minha cama.

Aquele pássaro noturno, com seu canto diferente, levou-me a devaneios imprecisos. Vi-me a olhar para as sombras projetadas numa das paredes. Um teatro de sombras: as grades da janela demarcavam o cenário. Um leque de folhas, balançadas pelo vento, se fechavam e se abriam num compasso de música. Flores miúdas caiam da trepadeira como estrelinhas que se desgarravam do céu.

Vi, então, surgir, por entre as folhas, a figura de um mágico. Sua capa esvoaçava levemente, tinha o nariz comprido e as mãos grandes, com dedos finos e longos. Como se viesse correndo, escondeu-se entre as sombras, sua própria sombra se impunha entre as outras. Movimentava-se para um lado e para outro, tirando do seu pontudo chapéu que, depressa subiu no galho mais alto da árvore que deitava sua sombra na parede.

De uma caixa oval, que me pareceu muito bonita, ele foi retirando com lentidão minúsculos pássaros de bicos compridos e asas de borboletas. Saíram em bandos assim que ele levantou a tampa. Como o gato já se preparava para atacá-los, depressa o mágico os recolheu.

De repente, percebi que um dos pássaros não tinha voltado à caixa e permanecia sozinho sobre o chapéu do mágico.

Fiquei olhando para ele. Como se fosse verdadeiro, vi-o sair da parede e voar até o peitoril da minha janela. À medida que ele voava, ia se tornando maior e maior até tomar as proporções de uma águia gigantesca.

Assustada, escondi a cabeça debaixo do lençol. Passado um tempo, arrisquei uma olhada para a janela. A escuridão era total, todas as sombras se haviam dissipado; o mágico, o cenário, o teatro de sombras, tudo fora retirado. Só a águia permanecera cada vez maior, as asas abertas como preparadas para o vôo, o bico recurvo, as garras afiadas vindo em minha direção.

A verdade é que estava acordada, sentada na cama e desesperada. Dei um pulo, saltei da cama em direção a porta; ela foi mais rápida e interceptou meus passos. Retrocedi acuada. Ante meus olhos perplexos, a águia ensaiou um vôo ao redor do meu quarto, pousou em cima do abajur, ainda com as asas abertas e, como num ritual de morte, curvou-se sobre si mesma. Todo meu quarto brilhou num ofuscamento de luz e ela se consumiu ali, junto a mim.

Não lembro de mais nada.

No outro dia, ao levantar muito cedo, havia no meu travesseiro uma pena de pássaro, acinzentada e brilhante.

E todo meu quarto brilhou.