Ensaio sobre a cegueira - José Saramago. Livro e filme.

A respeito da obra "Ensaio sobre a cegueira" (ESC), acho válido fazer alguns comentários, já que li o livro e vi o filme (deixo claro aqui minha paixão por adaptações de obras literárias para o cinema).

Partirei do cinema para a literatura: o filme é muito bom, sem dúvida. A meu ver, Fernando Meirelles conseguiu ser fiel a obra sem deixar a essência do livro se perder; porém, acredito ser melhor para quem NÃO leu o livro. Obviamente seria impossível transportar na íntegra o conteúdo literário para as telas em duas horas de filmagem, mas é indiscutível que as reações de angústia, as sensações sufocantes e a ansiedade pelo desfecho são muito mais expressivas para os leitores. Por ter lido primeiro o livro, não me surpreendi com as cenas do filme, muito "pesadas" na opinião dos não leitores. As cenas criadas na mente de quem lê, sem dúvida, são muito mais fortes do que as da tela.

José Saramago é um escritor brilhante (meu primeiro contato com sua obra foi na 8ª série quando a professora de Literatura exigiu a leitura de "O conto da ilha desconhecida"); com a organização e a disposição dos elementos dos períodos longe do esperado pela escrita convencional, estrutura suas obras a partir da união de elementos históricos, temas imprevistos e ideológicos para criar um cenário alégorico, fantasioso, a partir do qual busca alcançar uma visão da realidade. A verdadeira mensagem de suas obras normalmente não será encontrada na superfície de seus textos, como é o caso de ESC. Um leitor descuidado, ou até destreinado, poderá não ser capaz de assimilar o conteúdo verdadeiro que o autor deseja transmitir por meio de mensagens presentes nas entrelinhas.

A cegueira apresentada na obra não deve ser vista como uma cegueira física, real, mas metafórica. A partir da situação fantasiosa de toda uma população encontrar-se cega, José Saramago espera mostrar que, muitas vezes até inconscientemente, as pessoas tendem a não enxergar além do que lhes é conveniente.

A "cegueira branca" da ficção é descrita por um dos personagens não como a ausência de luz associada as cegueiras comuns, mas como se, ao contrário, todas as luzes estivessem acesas ofuscando as vistas para o que estivesse ao redor. Talvez assim vivemos hoje, preocupados em nos tornar melhores que os outros, com os nossos interesses acima de qualquer coisa, em um cenário movido pela concorrência de um mundo cada vez mais competitivo; cada vez temos menos tempo para dedicar aos prazeres da vida, temos mais preocupações e cobranças, o que nos torna cegos em relação ao próximo, nos torna egoístas e nos coloca distantes da beleza existente na simplicidade das coisas.

Essa é a cegueira descrita por Saramago; em ESC esta leva o ser humano à sua essência, reduzindo-o a seu instinto, levando-o a agir como animal que luta pela sobrevivência. Em toda narrativa apenas uma personagem encontra-se com a visão perfeita, a qual demonstra solidariedade e preocupação aos mais próximos, sendo também a responsável por transmitir aos leitores o estado em que se transformou a humanidade.

Na minha opinião é uma leitura válida, que não deve ser apenas decodificada, mas estudada com carinho. Pela primeira vez penso em (daqui a algum tempo) ler um livro pela segunda vez.

Enfim, o livro é fantástico. A leitura a princípio é difícil, mas é questão de acostumar! Destaque para a riqueza de intertextualidade (que merece um estudo futuramente) e da descrição das cenas.

Para terminar, um comentário sobre livro x filme: uma das cenas que mais me chamou atenção no livro foi o trecho em que a personagem que podia ver, em um momento de fraqueza, busca abrigo em uma igreja para retomar as forças. Quando se dá conta, percebe que todas as imagens dos santos apresentam os olhos vendados, fato estranho sobre o qual não encontra a princípio nenhuma resposta.

Duas interpretações possíveis para mim: 1) a humaninade encontrava-se completamente abandonada pelos céus, o que teria levado ao caos; 2) a humanidade encontrava-se vítima de seu comportamento cego, sendo o reestabelecimento da situação dependente unicamente da ação e da mudança de cada um, não podendo nem mesmo os céus interferirem. Para ser coerente com a intenção de Saramago ao escrever o livro, acredito ser a segunda opção a mais plausível.

Confesso que o trecho da igreja e dos santos era a cena que eu mais esperava ver no filme devido a força que tem no livro, mas que infelizmente não foi tão explorada.

Bom, escrevi demais e até poderia escrever mais! Para não ficar tão chato, porém, paro por aqui, o que foi um misto de análise literária e crítica ao comportamento humano. Talvez no fundo não tenha sido exatamente nada disso, mas pelo menos foi uma tentativa!