“O JANTAR” - CLARICE LISPECTOR

O conto “O jantar”, incluso no livro Laços de Família, diferente de outros textos da autora, apresenta o foco narrativo centrado numa figura masculina. Esse homem, cujo nome não é explicitado, observa com minuciosidade intensa um velho fazer sua refeição (jantar), ambos num restaurante. À medida que olha os pormenores da figura envelhecida, reflete sobre seus próprios limites – e os rejeita. Na verdade, não é um mero jantar que ele vislumbra, e sim um espetáculo do vigor primitivo diante do mais primordial ato da existência: alimentar-se. Metaforicamente, percebe-se isso na mão pesada e cabeluda do ancião perscrutando os diferentes manjares. O homem observa detalhadamente o velho a comer. Ambos não se conheciam. A “brusquidão” e a dureza do velho chamaram a atenção do homem, que lhe espreitava cada gesto. Até que o homem, extasiado, e sentindo certa náusea, percebeu no velho uma lágrima. Então, não tocou mais no prato, enquanto o senhor idoso terminou a sua refeição, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garçom e atravessou o salão, luminoso, desaparecendo.

“O JANTAR” – CARNE, SANGUE, TEMPO E DILACERAMENTO

Nos textos clariceanos, a reflexão se sobrepõe à ação. Clarice não se preocupa com a construção de um enredo tradicionalmente estruturado, com começo, meio e fim. Ela mesma declarou: “os meus livros não se preocupam com os fatos em sim, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo.” Por isso, os mesmos “negam” a importância e o andamento do enredo, cedendo lugar aos ares pertubadores das inquietações íntimas dos personagens.

No conto "O jantar", as inflamações desse olhar do narrador em sua profunda alma centram-se nos aspectos epifânicos da obra. Sendo assim, o viés temático dessa obra é o tempo, o devorador da vida humana na sua impiedosa voracidade.

A visão – o “monstro” do tempo

Um senhor de avançada idade, “(...) alto, corpulento, de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e mãos potentes” (LISPECTOR, 1998, p.76) adentra num restaurante e lá faz sua refeição noturna. A visão desse senhor chama a atenção de outro homem (narrador-personagem) que já se encontrava no local, e o mesmo passa a observá-lo com obsessivo interesse. Antes, detinha-se na observação de uma “mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros.” (LISPECTOR, 1998, p.76).

Esses aspectos “monstruosos” em que se manifesta o homem velho é a representação do próprio tempo. Percebe-se, pelas suas características, que o tempo é o único “monstro” que o homem ainda não conseguiu vencer, justamente porque “num dedo [há] um anel de sua força” (LISPECTOR, 1998, p.76), ou seja, a humanidade ainda não foi capaz de romper esse ciclo temporal e, assim, vislumbrar o sonho da imortalidade. O tempo é “amplo e sólido” (LISPECTOR, 1998, p.76), é algo maior que o ser humano e, também, é conscientemente sentido, algo do qual não se pode fugir.

O velho, como é tratado pelo narrador, em pleno exercício alimentar, oscila em momentos de equilíbrio e força, fragilidade e desmoronamento. Mastiga, vislumbra, come e se edifica, depois para e mergulha no vazio e na agonia.

Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta, passando a língua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente. (LISPECTOR, 1998, p.77)

À medida que avança em sua investigação ocular, o narrador vai perdendo-se na visão que vislumbra, deixando-se, ainda que inconscientemente, envolver e participar também do “banquete” daquele senhor: “Eu é que já comia devagar, um pouco nauseado sem saber por quê, participando também não sabia de quê.” (LISPECTOR, 1998, p.77). Nesse momento, o narrador começa a ter um tímido e íntimo mal-estar, isto é, a sua consciência de que está atrelado à fatalidade do tempo, de não poder escapar ao destino em que toda a humanidade está amarrada. Ele também se sente partícipe de algo que não o sabe ao certo. Na verdade, o narrador começa a entender que ele, assim como o homem, é o “prato principal” na mesa do tempo; é ele a refeição que diariamente o tempo consome. A cada dia, nos é tirado um pouco de vida, pelo fato de se estar dentro desse ciclo imprimido pelo tempo. Por isso, o homem é devorado aos poucos, como a carne que o velho senhor gordo saboreia no restaurante.

Esse mal-estar sentido pelo narrador (náusea), em Clarice, configura-se como sintoma iluminante da epifania. O processo de epifania pode ser descrito como a apreensão intuitiva da realidade por meio de algo geralmente simples e inesperado. Mais à frente, esse aspecto será trabalhado com mais profundidade.

A “lágrima” do tempo – vulnerabilidade

Em certo momento do jantar, o narrador observa que o velho aparentou engasgar-se, vendo-o estremecer por inteiro, a levar o guardanapo aos olhos e comprimi-los com brutalidade: “A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guardanapo pela testa.” (LISPECTOR, 1998, p.78).

Após esse episódio, imageticamente angustiante, o narrador percebe que algo escorre do rosto do velho: “– eu vi. Vi a lágrima.” (LISPECTOR, 1998, p.78). Essa lágrima, como se pensaria, não se refere a um estado emocional, ligada a algum sentimentalismo. Portanto, sua incidência é involuntária, resultado do sufocamento por uma congestão alimentar. Sendo assim, a lágrima alegoriza a “vulnerabilidade” do tempo, devido à interferência da ação humana em driblar dos ditames do destino. Mas essa tentativa, por mais investida que seja, sempre esbarrará no impedimento, posto que as rédeas que o tempo nos impõe são inquebrantáveis. Essa certeza é nítida no pensamento do narrador: “(...) eu próprio, com o aperto insuportável na garganta, furioso, quebrado em submissão.” (LISPECTOR, 1998, p.78)

Tinha-se o narrador, antes da chegada do senhor velho, no restaurante, fazendo sua refeição. A partir do momento em que este adentra o recinto e inicia a degustação de seu prato, o homem observador interrompe bruscamente seu jantar, desistindo da comida: “Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais. Porém, ele – ele comia.” (LISPECTOR, 1998, p.78). O narrador observa em seu prato a carne com aspecto cru. Aqui, percebe-se resquício de vida na carne, uma vez que ela estava crua. A carne, quanto metonímia do homem, do humano, alude ao fato de o tempo devorar a (viva) carne crua da humanidade. Ele, narrador, já não pode mais comungar dessa constatação por demais abaladora; ele se vê impotente diante da verdade descoberta: o tempo que consome a vida, nas paulatinas garfadas da carne humana. Nesse instante, o processo epifânico ganha maior proporção, avolumando-se num estado de êxtase revelador.

A náusea – a epifania do tempo sentido

Veio à mesa do velho gordo um garçom, trazendo-lhe outra garrafa de vinho, que “vertia vinho vermelho na taça (...)” (LISPECTOR, 1998, p.78). Agora, um novo elemento é incluído na refeição do homem: “Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu espreitava em vão. Nada mais acontecia.” (LISPECTOR, 1998, p.79). O vinho que é acrescido à carne, no prato do homem, representa o próprio sangue humano, numa referência à Santa Ceia do Senhor, na qual o corpo e o sangue de Cristo são oferecidos em favor da redenção da humanidade. Neste caso, tais símbolos assumem um sentido inverso: o corpo e o sangue são consumidos como forma de aniquilamento, de extinção do ser. São o corpo e sangue do próprio narrador-voyer (e por extensão do homem), a metáfora da vida humana servida numa badeja ao tempo, “velho comedor de crianças” (LISPECTOR, 1998, p.80)

A náusea clariceana, em si, é o grande centro do relato: “Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e perigoso” (LISPECTOR, 1998, p. 79). Sobre esse mal-estar, Benedito Nunes explana:

Manifestando-se como um mal-estar súbito e injustificável que do corpo se apodera e do corpo se transmite à consciência, por uma espécie de captação mágica emocional, a náusea (mais primitiva do que a angústia e como esporádica) revela, sob a forma de um fascínio da coisa, a contingência do sujeito humano e o absurdo do ser que o circunda (NUNES, 1989, p. 117).

Torna-se perceptível o nauseado estado do intermediador, ampliado e reforçado pelos silêncios e "brancos" presentes, e, sobretudo, sentidos nas "sombras" de cada ação da narrativa. A princípio, na figura do "velho" que está a comer, existem momentos de edificação e queda. Ruína demonstrada, por vezes, em reações violentas; em outras, por silêncio sepulcral. Com o narrador-personagem há somente o aniquilamento lento e gradual. Influenciado pela observação do "velho", sente-se fascinado e ao mesmo tempo dilacerado, mas não consegue se levantar como ele. A visão do velho (tempo) devorando a carne (o homem), para o narrador é algo fascinante. Em todo o caso, também se torna algo aterrador, visto que ele também faz parte desse processo, não lhe sendo permitido fugir da ação predadora do tempo.

“Ele terminou.” (LISPECTOR, 1998, p.79). O velho (tempo), após o banquete, sente-se saciado. Aparentemente fraco, o tempo ainda tem toda potencialidade para continuar sua incansável refeição humana. Ninguém está eximido de ser apunhalado e tornar-se o próximo prato a ser servido. Todos fazem parte do cardápio; resta saber quando serão servidos. E contra isso, não há nada que se possa fazer: “Ele parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós. Sem que eu possa fazer nada.” (LISPECTOR, 1998, p.80)

Ao final da observação e do ato, o narrador não consegue nem ao menos terminar o almoço. Nesse instante, o estado de clarividência, denominado também por epifania, toma conta da personagem.

Mas eu sou homem ainda.

Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue (LISPECTOR, 1998, p. 80-81).

Esse instante de iluminação é para o personagem a sua grande revelação. Ciente da “doçura da velhice” que o tempo carrega, ele percebe-se ainda como um homem, ou seja, ele ainda tem tempo para desfrutar dos sabores que a vida lhe proporciona. Ele não é a carne do prato. A sua consciência de que ainda não é chegada a hora de fazer parte da refeição do tempo. A justificativa que dá para não comer diz respeito à confluência da morte com o tempo, este caminho pelo qual o homem se envereda, inevitavelmente, ruma àquela. A certeza da morte, “desconhecida, majestosa, cruel e cega.” (LISPECTOR, 1998, p.80) causa encanto e pavor no sujeito, a ponto de inibi-lo a alimentar-se. Comer a carne é pactuar com os desígnios do tempo e o narrador não se sente preparado para isso. Ele ainda não é “esta potência, esta construção, esta ruína”, não tem capacidade para suportar essa verdade, apesar de tê-la conhecido.

Então, ciente de sua fragilidade quanto aos ditames do tempo esmagador, ele nega aceitar a condição na qual está preso, não comunga do farto banquete do tempo, mesmo sendo o cordeiro imolado, prestes a ser degustado.

Conclusão

Clarice consegue através de sua eficaz técnica, nos dizer o "indizível", ou melhor, através dos seus roteiros "triviais", das suas aparentes histórias comuns, dos silêncios e choques, nos fazer sentir o que não pode ser dito somente através de palavras. Numa espécie de “realidade adivinhada”, a autora expõe a precariedade e a clandestinidade da consciência e da existência, entre as aleluias e as agonias do ser.

No conto "O jantar", o narrador sente-se fascinado com o episódio, até então inédito. Ver um senhor gordo devorando um pedaço de carne, com voracidade e gosto, despertou-lhe a visão para o novo em meio ao trivial. Porém, após percorrer um profundo estado de revelação, encontra-se dilacerado pela visão antagônica do velho, como se fosse a sua própria carne que o senhor retalhava no prato. Assim também, o tempo nos retalha diariamente. Sem que se perceba, nos é tirado um “pedaço de carne”, uma parte de vida, um fôlego de esperança, uma alegria, um amigo, um sonho, enfim. O velho e gordo monstro do tempo sacia-se, mas nunca por completo. Estará sempre à espreita de mais carne, ceifando a vida humana. Cabe ao homem preparar-se para quando chegar sua hora de ser servido assado ou cru, ao molho branco ou pardo.

REFERÊNCIAS

LISPECTOR, Clarice. O jantar. In: LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989.

Saulo Sozza e Wildes OLiveira Silva
Enviado por Saulo Sozza em 30/01/2012
Reeditado em 28/02/2020
Código do texto: T3469381
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