“INSCRIÇÃO” - CECÍLIA MEIRELES - Macroanálise

INSCRIÇÃO

Cecília Meireles

Sou entre flor e nuvem,

estrela e mar.

Por que havemos de ser unicamente humanos,

limitados em chorar?

Não encontro caminhos

fáceis de andar.

Meu rosto vário desorienta as firmes pedras

que não sabem de água e de ar.

E por isso levito.

É bom deixar

um pouco de ternura e encanto indiferente

de herança, em cada lugar.

Rastro de flor e estrela,

nuvem e mar.

Meu destino é mais longe e mais passo mais rápido:

a sombra é que vai devagar.

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Em "Inscrição", de Cecília Meireles, o eu lírico além de encontrar-se num estado de paradoxo, também se acha em situação de entrelugar, num espaço intermediário entre dois extremos. O título – inscrição – dá a ideia de permanência, de busca por firmar-se num determinado lugar, em virtude da posição intervalar na qual se encontra o sujeito. Inscrever-se seria um ato eterno, um registro permanente no tênue espaço-tempo da vida. Em outro poema ceciliano (Inscrição da areia), percebe-se novamente o desejo de permanência: a areia, aqui, possui o mesmo valor simbólico das ondas do mar, a de uma superfície em constante transformação e, portanto, incapaz de reter uma inscrição. Para tanto, a temática do poema circunda a questão da brevidade da vida. Deixa-se transparecer certa inquietação provocada pela fugacidade do tempo, apesar de seu tom melancólico e sereno, jamais tocando o desespero.

O eu lírico inicia o poema exaltando sua excelência em relação aos demais humanos. Ele se encontra numa posição entre flor e nuvem, entre a sua sensibilidade e o céu, “um mundo além, de sonhos, imaginação”. Encontra-se entre a estrela e o mar, elementos que assim como flor e nuvem, representam o etéreo e a humanidade. Nesse sentido, o eu lírico questiona a razão de os humanos serem apenas instintivos, limitados em chorar, em suas necessidades mortais, deixando de lado o sensível incrustado em sua essência.

A vida é bastante difícil, posto os percalços por que o ser humano enfrenta, como perdas, conflitos, decepções etc. Por isso os caminhos não são fáceis de se percorrer. Encontrá-los sem pedras é o grande desafio do homem. Lembrando Drummond, “no meio do caminho tinha uma pedra”. O rosto vário do eu lírico surge como manifestação da sua capacidade de revelar diferentes sentimentos, que se configura como a própria identidade humana. Tal aspecto entra em contradição com as firmes pedras, a dureza das pessoas que não afloram a sua sensibilidade, que não sabem de água e de ar, não entendem a capacidade que todo ser humano tem de lidar com situações adversas, apesar das angústias do dia a dia. Água e ar são elementos puros e de propriedades fluidas, isto é, capazes de tomarem a forma dos recipientes nos quais se encerram. Ao mesmo tempo em que simbolizam a serenidade, a pureza, reforçam a ideia do impasse humano de resistir às mudanças, de não se moldar às situações, uma vez que as pedras apresentam forma fixa e imutável. Não esquecendo que essa metamorfose humana já fora prenunciada por Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta,/ Mas um dia afinal eu toparei comigo...”.

Por esse motivo, a voz poética obtém a capacidade de levitar, de se distinguir dos demais seres, pondo-se num patamar superior, quase uma divindade, visto que o ato de levitar é reservado ao campo celeste ou místico. O fato de estar entre uma e outra coisa a torna transfigurada, em constante processo de reinvenção e, por isso a habilita a deixar heranças por tudo. Em todo o caso, o tesouro que relega é pequeno, porém precioso: um pouco de ternura e encanto. E a simplicidade dessa herança independe de seus herdeiros; mesmo que algum dia estes a reclamem ou não, o importante é deixá-la em cada lugar, como vestígio de que por ali alguém passou e quis tornar-se inscrito.

O ser repartido, dividido entre flor e estrela, nuvem e mar, é alimento para o mundo e, por isso, também é rastro de todas as coisas. As pegadas que deixa pelo caminho simbolizam a materialização de sua inscrição na terra, feito por meio da passagem por lugares onde semeio sua herança. Por outro lado, o eu lírico tem consciência de que a sua missão não terminou: ainda existe um longo caminho a percorrer, logo está fadado ao seu destino. Interessante observar a velocidade de sintaxe que o verso “Meu destino é mais longe e mais passo mais rápido” imprime. A repetição do advérbio mais, bem como a supressão da aditiva e justificam a necessidade da pressa do eu poético em cumprir seu destino na terra, dada a grande distância que o aguarda. Entretanto, existe um grande descompasso íntimo nesse ser, pois ele consegue andar rápido, mas sua sombra vai devagar. A sombra, nesse caso, é a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes. Seria, pois, as limitações do homem, visto que elas fazem parte dele e o acompanham onde quer que vá. O desconcerto nasce da necessidade de concluir seu caminho de forma rápida, em contraste com a lentidão dos obstáculos humanos.

Em última instância, o impasse que o sujeito poético padece no poema pode, ainda, ressoar a instância do fazer literário. O escritor situa-se no entrelugar da arte, uma posição intermediária entre a flor-mar e nuvem-estrela, entre a sensibilidade necessária ao escritor produzir sua obra e a terrenidade de um “mortal”, visto que também é uma pessoa qualquer. Seu caráter intervalar refere-se à capacidade que detém de captar o mundo de forma peculiar e estética.

Percorrer as veredas do literário é tarefa árdua, pois sempre haverá as firmes pedras pelo caminho, aqueles leitores que passarão pelo texto sem o terem sentido, ou que resistirão à sua leitura, que não saberão de sua água saciadora e de seu ar vivificante. Todavia, isso não é barreira para o escritor, que levita, sublima-se em sua expressão poética e vence os obstáculos pedregosos, deixando como herança tudo aquilo que lhe veio à essência no momento em que produzia. Mesmo que seja pouco, pois o leitor jamais conseguirá sentir a mesma emoção do autor quando este concebia sua obra, mas poderá experimentar uma pequena parte que seja.

O que deixa pelo caminho são rastros, pegadas de sua “existência semideusa”, conhecida mediante suas obras. Por isso, seu destino é longo e célere e precisa andar a passos rápidos. Entretanto, a sombra que o acompanha segue lenta, assim como os obstáculos que todo escritor enfrenta para se firmar enquanto “oleiro das palavras”. A inscrição que todo escritor deseja fazer na areia do tempo, que por vezes as ondas apagam e carregam para o mar.

Saulo Sozza
Enviado por Saulo Sozza em 01/02/2012
Código do texto: T3475266
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