Por que escrever ou não escrever as suas dores e angustias

Falaram-me um dia que um grande escritor deve desabafar suas angustias e dores em uma folha de papel, como que um doente em fase terminal não procuraria o médico, mas a Deus como sua última chance de aliviar a angustia de seu peito. Mas o que escrever quando as palavras não dizem a dor em seu coração, quando o sentimento é maior que qualquer causa, e a consequência é sempre um mistério como uma imagem refletida na água? Quantos escritores fizeram de suas angustias, problemas pessoais, desastres amorosas, uma verdadeira obra prima, mas sem que isso os libertasse da agonia cravada em sua mente. Oscar Wilde, Marx, Miguel de Cervantes, Augusto dos anjos, Shopenhauer, Freud, Kafka, enfim, uma infinidade de grandes escritores que encontraram o mundo, no entanto, a si mesmos nunca encontraram. Meu ser é um ser tão pequeno e grande ao mesmo tempo, por vezes forte e por vezes fraco demais, que eu não sou apenas eu, mas pedaços das pessoas que passaram em minha vida e ao mesmo tempo nenhum traço delas. Olho o mundo a minha volta como uma espécie de labirinto sem saída, o qual nos resta apenas viver pelo nosso fracasso de não sabermos o que se tem além disso. Às vezes consigo enxergar a vida pelo olhar de um demiurgo que cria seus próprios poderes para fazer a vida ter algum sentido. Mas apesar de tudo “nenhum homem é uma ilha isolada”, por mais que este seja nobre de espírito, bondoso, forte demais, precisa de uma alma que o acalente na triste jornada do viver.

Somos praticamente obrigados ou persuadidos quando vivemos em sociedade a falar de nossas tristezas e aflições, caso contrário morreríamos sufocados de tristeza, estaríamos entregues a solidão por completo, não seríamos menos diferentes que um cão abandonado que vive comendo restos de comida e mendigando por um pouco de atenção. Ainda assim, vejo na sociedade pessoas tão desumanas a arranjarem motivos alheios àquilo que é humano para tratarem os outros com desdém e indiferença. É nesse momento em que a raça humana se torna tão parecida com os animais, que a diferença se torna quase fisiológica somente. Qualquer motivo ou argumento para se agir com desdém e indiferença é um motivo maior que o próprio egoísmo, é a morte de tudo o que é louvável, é sermos piores que todos os outros animais, pois nem mesmos os lobos, as raposas e os chacais abandonam seus grupos, filhotes, e até mesmo o macho ou fêmea da espécie por um motivo que leva a indiferença, pois a vontade maior da natureza antes os guia por um instinto maior que uma falsa moral: a vida. A indiferença e o desdém, por vezes, podem levar a morte e isso não é aceitável nem mesmo no reino animal. Ao contrário dos animais e na contramão do que é indiferente, surge no homem que tem fala à compaixão. Algo que o outro consegue te enxergar não como uma coisa, mas com dignidade, consegue sentir e ver suas dores e não é alheio e indiferente ao que lhe acontece. É nesse momento, em que nós humanos casados e moribundos de sofrer falamos as almas generosas que se compadecem de nosso sofrimento e amargura, como o pecador ao confessionário, como o filho a mãe, como o marido a mulher, como um amigo a outro amigo, quando oramos e pedimos a Deus ou quando simplesmente existe um ombro, a voz, o olhar e as lágrimas.

É bem verdade, que de vez em quando é melhor ter um cão ao nosso lado que certas pessoas com seus fundamentos moralistas ambiciosos, pois o cão pode até latir por instinto, mas pelo menos ele abana o rabo e não é totalmente indiferente como certos humanos. Posso até falar às palavras que me veem a mente quando tenho minhas maiores aflições e assim despir-me de minhas agonias aos outros, mas há sempre um fio tênue quando tento fazer isso, pois as palavras têm significações, e essas por suas vezes interpretações, que por vezes são entendidas de formas claras e por outras esfaceladas por completo. Ora, se tento fazer entender as dores que sinto pelas palavras, quase sempre uso palavras pessimistas, de cunho triste e desagradável ao ouvido de outrem, e isso, digamos, já é um fato que causa certa repugnância nas almas menos compassivas e egoístas, de modo que, o assunto quase sempre é desinteressante para elas. Além disso, o julgamento bestial de quem ouve as palavras e querem interpretá-las as suas vãs maneiras e quase sempre um aniquilamento da verdade contida em sua essência.

Do mesmo modo, quando tento escrever algo triste, doloroso, as palavras que escrevo pode no máximo causar ao leitor uma comparação com algo de sua própria vida, nunca a própria tristeza de meu íntimo ser. Quantas vezes lemos ou ouvimos algo que nos recorda as dores que estamos passando? Isso é muito comum com poemas ou músicas, em que as dores revelam em nós a nossa forma mais íntima, aquilo que jamais queríamos que fosse revelado, pois isso é justamente aquilo que chamo de perda de identidade, mas que na verdade todo ser humano age e tem em maior ou em menor grau a perda daquilo que ele é, porque a dor é um estado de sobrepujar aquilo que somos - como o corpo a doença. Ela cria em nós a racionalidade propriamente dita, entre o perdão e a arrogância, entre o fracasso e a superação, assim, não mais precisamos achar, porém compreender, pois nunca somos algo pronto e acabado, justamente porque estamos sempre sendo alvo de nossa própria consciência entre nossos erros e acertos, dor e sanidade, entre nossos fracassos e vitórias, entre a remissão e culpa, entre o sujeito que nunca se acha culpado, e aquele que admite seu erro, entre o humilde e o orgulhoso/arrogante. É nesse estado que mente e corpo se completa e também nos tornamos um único e mesmo ser.

Sem sombra de dúvidas podemos aprender bastante com os grandes pensadores, conceitos e verbalizações, argumentos e discrepâncias, mas a dor que cada um sente é quase que impossível dizer pelas palavras. Assim, a essência intima das coisas ninguém pode conhecer - como diz o pensador alemão: "O que as coisas em si possam ser, não o sei, nem necessito sabê-lo, porque uma coisa jamais pode aparecer-me de outro modo a não ser no fenômeno". Talvez nisso se encontre o grande mérito desse pensador, o de dizer que a “coisa-em-si” jamais pode ser conhecida, e também em afirmar que não somos seres morais, antes pelo contrário, somos seres iguais a qualquer animal da natureza, seres de causalidade, e esse elemento que temos a mais e sobrepujamos sermos melhores que os outros animais, a saber, a razão, sermos racionais, isso eu digo, talvez ainda nos coloque em um sentido pior que os outros animais, pois ainda estou a descobrir qual é esse grande mérito de sermos racionais se ainda não a conseguimos usá-la em sua intensidade para suprir o sofrimento humano, mas antes como uma busca sem fim pela verdade que nunca chega diante dos olhos. Pela razão destruímos coisas belas, eliminamos amores, fazemos guerras, cobiça, inveja, ressentimentos, enfim, tudo que a ética propriamente dita negaria.

Bem, se de um lado tal pensador alemão teve seu grande mérito em dizer que a “coisa-em-si” não pode ser conhecida, por outro, outro pensador teve seu grande mérito, a meu ver, em dizer que corpo e mente (sentimento) é uma e mesma coisa. Talvez seu erro seja em dizer que isso pode ser conhecido, como uma espécie de vontade enigmática. A dor que sinto em meu corpo, em minha alma, não é uma ilusão disfarçada, por outro lado, eu jamais consigo plenamente falar ou expressar de forma clara como meu corpo sente tal dor, apenas uso as palavras para expressar a metade daquilo que sinto, pois, certamente o resto não tenho como enunciar. Quando as dores não são apenas físicas ainda se torna pior o lado da elucidação, como por exemplo, as dores sentimentais do amor e da desilusão. Fato é que as palavras podem tentar expressar o que sinto em detrimento de minhas dores e angustias, porém elas mesmas não dizem o que é isso que sinto em minha alma, em meu espírito. Isso é um enigma para cada ser indivíduo, só ele tem o poder absoluto de sentir aquilo que é expressamente seu em sua mente e corpo. Cada um sente sua dor e somente ele pode senti-la, como cada ser pode apenas saber quem ele mesmo é, e todas as representações abstratas e objetivas vindas de fora de si, são como cascas de ovos, conceitos prontos a morrer na água do mar, pipas soltas ao vento, a qual nada diz, mas querem sempre dizer tudo.

O escritor enquanto escreve suas dores por um lado é um embusteiro, por outro um artista fascinante. Embusteiro porque as palavras ali representadas em seus versos e poemas somente ele pode entender de forma clara o que está ali escrito, pois cada frase ou palavra faz com que ele recorde por inteiro as representações de suas dores. Jamais algum leitor saberá por inteiro o que tais palavras e frases poderiam dizem em sua plenitude, mas antes fazem comparações de forma singela com sua vida e natureza. Ai esta também seu grande fascínio e mérito, poder pelo menos fazer que cada indivíduo ao ler sua obra consiga exprimir sua tristeza, relembrar de suas agonias e dores, mesmo sabendo que não são iguais as suas (do escritor), mas antes algo tão diferente e tão próximo ao mesmo tempo, que é um enigma para todos os homens.

As palavras escritas dizem apenas cinquenta por cento do todo, o resto não tem como saber, pois somente quem as escreveu tem a ideia do que cada palavra significa em sua plenitude, de suas dores, antes não só psicológicas, mas físicas também. Por exemplo, a dor de um grande amor rejeitado e sempre dita de forma quase clara pelo sentimento expresso, porém, se formos mais longe, todos nós sabemos o quanto nosso corpo sofreu enquanto as dores do amor estiveram presentes, as mãos gélidas, o corpo febril ou gelado, estômago embrulhado, tremedeira, falta de raciocínio, coração acelerado, etc. É certo e claro, que nosso corpo e mente sofreram dores e sensações horríveis que é totalmente difícil de dizer do modo mais claro possível, como, pois, agora enquanto esforço-me para falar de tal sentimento e de suas dores a vocês. Mas mesmo assim me parece em vão, pois fica apenas uma longe via e pequenas lembranças das dores em si mesmas enquanto vocês tentam saber do que falo. Antes vocês remetem por inteiro as dores nas quais vocês mesmos sentiram, enquanto as minhas são quase por inteiras desprezadas por vocês ao não compreenderem ao certo as dores as quais senti. Isso se dar porque nosso processo não busca uma compreensão clara das dores alheias, antes fazemos comparações as nossas, e esse grau de comparação às vezes se apresenta de forma ridícula, fato que muitas vezes menosprezamos as dores alheias e tornamos nossas dores o centro das atenções. Cada dor deve ser compreendida em sua máxima essência, só assim, não seremos juízes e advogados dos outros, não falaremos imbecilidades, e no máximo seremos aprendizes, advogados e juízes de si mesmos.

Essas dores ligadas à racionalidade e ao corpo lembra-me por analogia um bebê que chora. Não sabemos qual é a sua dor ao certo, se esta com fome, sente-se desprotegido, falta de carinho, o máximo que podemos chegar são as possibilidades, mas o que de fato o bebê está sentindo, se nem ele mesmo consegue dizer? Seja por afeição ou dor física é quase impossível saber ao certo o que o bebê sente, pois ele jamais terá condições claras de dizer. Assim também somo-nos no limite da dor, sabemos o que nosso corpo tem, sabemos o que nossa alma sente, mas quando vamos transmitir aos outros sempre tem algo que nunca é dito ou escrito, pois não temos como expressar em palavras, é algo só nosso, apenas nós sabemos e mais ninguém. Hoje quando vejo a dor alheia não mais fico presumindo, achando, assim me tornaria iguais a muitos que fazem chacota das dores que não são suas. Antes aprendi que cada um tem sua dor e que eu jamais entenderei a dor alheia por inteiro na sua mais íntima essência. Quase ninguém está interessado em suas dores e angustias. As palavras ditas com carinho são quase sempre uma interpretação social. As dores são quase sempre curadas na solidão. É preciso viver a dor na sua mais íntima vontade para que não sobre nada de remorsos no coração de quem a sofreu. Assim, estaremos libertos da dor mesmo estando presente ao que lhe causou. Dessa forma, poderemos amar sem recompensa, sem troca, amar por amar. Lembrei-me das palavras de Cristo ao dizer: “Se amardes aos que vos amam, que mérito há nisso? Pois também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que mérito há nisso? Também os pecadores fazem o mesmo.”

Esse amor tão nobre chega a ser um mistério, algo que talvez jamais saibamos, “porque agora vemos por espelho em enigma”, um véu que colocamos no nosso rosto e não queremos tirar, temos medo de olhar “face a face”, e assim conheço apenas em partes, não o todo. Seja a dor do amor, ou a de alguém que se foi, a dor da solidão ou a dor da fuga, a dor de não saber perdoar ou a do querer o perdão, seja pela ferida na alma mal curada ou o amor jamais esquecido, não sejamos nós os justificadores, não sejamos nós os acusadores, não sejamos os julgadores das dores alheias, nem acharemos nossas obras melhores que a de ninguém, pois até mesmo Deus em seus ensinamentos acha isso uma baboseira sem tamanho. “Eu te fiz o bem, lembra?”. E daí, até mesmo os grandes crápulas da humanidade fazem bem aos seus, dizem fazer justiça, mas isso não diz nada, nem mesmo se é amor, antes interesse a seus próprios fins, mesmo que esse seja a felicidade. Lembremo-nos da palavra do profeta: “Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo da imundícia; e todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades como um vento nos arrebatam.” Cada vez que apontamos os erros, rimos da desgraça alheia, damos as costas ao sofrimento de olhar que clama, a guisa do nosso tormento chegará mais rápida, auxiliando o veleiro que conduz as portas do inferno, e esse não é tão distante quanto aqui mesmo.

Amiúde, o “oi” a dor alheia soa como um deboche em pessoas como eu os quais os ouvidos de quem perguntou “como vai” estão tapados com a cera da estupidez humana. Deveras eu nunca ter pedido auxilio as minhas dores a ninguém, pois muitas vezes fui tratado com desprezo, injurias, falta de atenção, mesquinharias, tratam minhas dores como se fossem bobices, e o desdém de pessoas que amo, mas que não me amavam, e simplesmente sentiam por mim uma pequena simpatia, às vezes admiração, acabavam no limite da dor. Assim eu fui me resignando a ficar na solidão que esperar a compaixão que nunca chegara a mim. Quais as almas nobres de espírito que estariam interessadas nas minhas dores? Antes vejo uma multidão de pessoas que não estão nem ai para a dor alheia, e gritam com os olhos abertos, levem suas espadas e cruzes! Sorte daqueles que encontram uma alma nobre de espírito puro e genuíno, que se compadece do sofrimento de outrem sem que isso seja uma troca, pois o mundo dos espíritos de porco soa mais alto, a esfinge mostra o lugar onde deveríamos morrer e o porquê da morte, e os sorrisos de nossos amados nos fere ainda mais. Eis porque desisti de contar minhas dores, prefiro agora o silêncio e a solidão, como um eremita que consegue falar consigo e com o mundo. Mas de vez em quando ainda desse uma lágrima, vejo alguém a quem acredito, alguém que vejo um coração puro, que me encanta o olhar, e dessa forma, tento ainda acreditar, ter esperança que pelo menos um pouco sou entendido, que tudo não está acabado. E falo, escrevo.

Talvez porque sou alguém em que acredito em piedade e compaixão, mesmo sabendo a raridade em que vejo isso em nosso mundo possa ainda acreditar em alguém que possa ouvir-me, mesmo sabendo que o inefável sentido da dor jamais ficará clara e distinta, apenas um véu que cobre o manto da esperança, como uma pintura borrada, uma arte ainda não acabada, mas que chama a atenção e quando pronta faz emocionar-se. Apesar da decepção que me acorda o juízo de ver mais e mais vezes alguns de meus amados antes de compreenderem minhas dores, fazerem julgamento de meus juízos, como quem constroem seus Judas na semana santa para depois atirarem pedras e pauladas, assim, alguns desses antes da compreensão dão sua sentença, de que a dor por vezes possa ser merecida, e até mesmo debocham na simplória visão que tem de mim perante si mesmos. Enquanto eu não desejo a eles que passem pela metade de minhas dores, pois o golpe poderia ser fatal. Talvez eles não suportassem. Levando-se em conta que as dores narradas e escritas sejam sempre verdadeiras, digo a todos, que minhas mágoas e a cólera que tenha sentido por alguém é igual a uma bexiga com um furo, esvaziar-se-á em breve para que não sobre vestígios de dores passadas, para que eu não guarde tormentos, para que eu consiga perdoar, para que eu seja honesto comigo mesmo e com os outros, para que venha a compreensão e não o julgamento, para que eu não seja como eles: julgadores. Antes o que aqui escrevo com certa raiva, saíra tão breve e de maneira tão límpida de mim, que olharei sempre com sorriso as pessoas que me fizeram alguma maldade, em que meu sentimento foi tão duro quanto à perda de um filho, mas procurarei não lembrar-me das dores antigas, e se lembrar, que eu lembre como um dia de sol com uma brisa suave, em que não me alegrarei com o primeiro batuque, mas também não desprezarei um coração sincero e arrependido, muito menos olharei com espanto a alma nobre que este ou aquele com muito esforço se encontra diante de mim.

As almas nobres de coração são sempre algo raro, de perfeita honra e dignidade, na mais extraordinária compreensão daquilo que pode ser o ser humano. Até porque todo homem tem seu ponto fraco, como a Criptonita para Super-Man. No mais das vezes, o ponto franco submetesse por aquilo que não conseguimos explicar de forma racional, pois em todos isso se manifesta de forma singular, a saber, os sentimentos. Compreendi de forma clara e distinta que muitas vezes os sentimentos e instintos são mais fortes que a racionalidade, como algo que é inerente a nós, e submete a racionalidade a ser escrava dessa força maior. Por isso, que alguns homens que se consideram Don Juan, quando perdem a racionalidade da conquista por se apaixonarem, acabam entregues ao infortúnio que a dor causa neles. Do mesmo modo, algumas mulheres quando se apaixonam esquecem a racionalidade, tornando-se a si tempos depois, quando as dores já lhe causaram grandes prejuízos e o tempo do amor verdadeiro passou despercebido. A ilusão é na maioria das vezes preferível que a verdade. A racionalidade se perde pela medida que não se mede. Assim escreveu Augustinho: "A medida do amor é amar sem medida." E tudo isso me deixa angustiado, pois como poderei eu colocar minhas dores e angustias em um simples pedaço de papel? Que dignidade existe nessa folha branca que de nada me fala, apenas eu a ela, que eu possa considerar magnânimo esse pequeno gesto em colocar as lágrimas de minha vida? Não serei eu um tolo em permitir que os outros façam quaisquer considerações e interpretações de minhas dores sem que os mesmos nunca saibam o que sofri?

Então pergunto novamente a mim mesmo por que escrever minhas dores, angustias e sofrimentos, se meus leitores não conseguiram ao certo entender-me? Será que realmente preciso disto para abrandar a alma ou se o que pretendo inconscientemente é envenenar o resto dela? A quem as dores e infortúnios são merecidos, a todos ou somente a alguns pobres miseráveis? De que vale viver a vida toda tentando a mais plena virtuosidade como “Justine” do Marquês de Sade, se o troféu é a desgraça e a humilhação? Uma vida talvez seja pouca para tornar um homem bom e justo, e assim conseguir paz e ausência de dor, com certeza, poucos são os espaços nesse mundo que permitem um homem regenerar-se, porque nossa mente costuma ver os erros e as imperfeiçoes como um grito de miséria necessário, e esses são dadas maiores notas, como eu poderia dar a ignorância ignóbil de quem ver o mundo somente dessa maneira. Eu recuso-me a pensar tão baixo.

Contudo, tenho que admitir que os versos do poeta falam em mim não o que ele mesmo passou e sentiu, mas me faz dar um significado próprio as minhas dores e angustias, e ainda, saber que o poeta não está a criticar-me, mas faz suas críticas a todos os imbelilóides que querem dar o que não podem e que renegam o que poderiam dar, assim como os versos que diz: “como, pois, sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas e coragem para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sague velho dos avós, e vós amais o que é fácil! Eu amo o longe e a miragem, amo os abismos, as torrentes os desertos.” Esse amor do que é fácil seja talvez o mais desprezível de todos, pois é esse que nega a dor e o sofrimento, não se permite viver até a última gota o sangue derramado, ele corta pela metade o que poderia ser pleno e belo pelo medo, sem saber que sendo assim, o medo o perturbará para toda a vida.

Nas mais variadas facetas da vida, os escritores debruçavam-se para poder passar aos leitores os dramas e misérias quem levavam a dor, alguns com personagens fictícios e outros com biografias ou uma mistura de ambos. A mim não importa se um fato é contado na sua veracidade ou é apenas criação, pois de fato jamais poderei conhecer as dores que os personagens sentiram em si mesmos, apenas abrandarei meu espírito fazendo comparações a querer entender as dores ali expostas. Igualmente uma criança que jamais entenderá as dores de uma grande paixão é a nossa tentativa de conhecer por completo as dores alheias. Entretanto, o fato do escritor colocar suas angustias no papel, selar seu sentimento, transmitir o intransmitível, é justificável pelo fato que ele se isola do mundo por completo. E como disse anteriormente somos levados a uma força maior a falar de nossas fraquezas ou morreríamos de tristeza. No mundo da solidão, ele... Apenas ele consigo mesmo e para si consegue fazer isso. Não há mais ninguém além dele mesmo e o papel em sua mesa, de modo, que as palavras ali escritas não são para terceiros, por mais que leiam o que ele escreveu no seu mausoléu de linhas e palavras, o que ali está escrito é para si mesmo, como uma espécie de fuga a falar consigo, pois sabe que os outros jamais poderão entender-lhe por completo.

Assim, ele esvazia-se da dor ao mesmo tempo em que consegue rir de alguns que leram e interpretaram seus textos de forma totalmente equívoca, como uma satisfação peculiar de quem a si mesmo si conhece e mais ninguém pode conhecê-lo. Alias, não quero chegar aqui e dizer o absurdo de que no mundo não possa existir pessoas de almas nobres, compassivas, com um coração invejável, que não possam chegar próximo das dores alheias como suas, pois conheço até algumas, muito poucas, mas que ensinaram-me o fundamento para essa façanha tão louvável e sublime: a compreensão. E aqui faço uma ressalva, a compreensão a qual falo não é a mesma que está nos dicionários, mas talvez uma espécie de Sinédoque em que as partes e o todo estão sempre envolvidos.

Para melhor dizer, a compreensão seria examinar minuciosamente tanto as partes quanto o todo, sendo que o sujeito teria que estar fora de si para fazer tal exame, igualmente a um antropólogo que tenta em suas pesquisas jamais envenená-la com sua cultura. É preciso suspender toda a crença e todo achismo, como a “quarta parede” brechtiana sendo exposta de modo inverso. Para isso é necessário se esvaziar por completo dos preconceitos, dos limites, da moral bestial, e olhar apenas o homem enquanto homem, ser enquanto ser, nada mais, nada menos. Isso é necessário justamente porque não somos apenas racionais, também temos sentimentos e instintos, não há um ser melhor que outro, cada um de nós pode ser santo e demônio, apenas dadas as condições na vida julgamos como verdade aquilo que se apresenta como um erro, mas que no fundo não sabemos ao certo, pois aquele que disse seguramente nunca fazer tal coisa e quando no futuro se encontra a fazer, e as contradições morais e de crenças se perdem pelo seu ato, ele pode começar então o processo que antes deveria ter sido feito pela compreensão que é a via de sair de si e voltar a si de forma melhorada. Mas talvez não façam isso, antes prefiram ser um Harakiri e cortar o estômago que tentar mudar suas opiniões. Não quero aqui fazer apologia ao erro, aos desagrados, porém dizer que antes de julgar tente primeiro compreender, assim cada um de nós estará usando a racionalidade como ela mesma deveria ser usada. Aqui, no entanto, não me prenderei a falar mais sobre a compreensão, outro dia talvez explique de forma clara todo o raciocínio que tenho sobre ela.

Em um mundo em que a compreensão é mais que um desafio, em que falar com seus iguais e buscar neles essa máxima compreensão parece antes entrar em um labirinto sem saia, e que até mesmo falar com Deus parece às vezes longe demais, pois alguns homens transformaram o que de melhor havia em Deus em um sofrimento inerente: “pecado original”, que nos condena antes mesmo do julgamento da salvação a morte. Todavia, pouco ou nada sabem eles que falar com Deus é falar consigo, pois não se pode falar com Deus sem que se esteja sozinho em seu próprio mundo. Nesse mundo, então, é indispensável aos poetas e escritores antes falarem consigo mesmo, buscarem em si alivio para suas dores. Assim fica claro mais uma vez, que escrever de suas dores e angustias é escrever para si.

O que são essas dores e angustias? De onde elas vieram e para onde elas iram? Lembro-me como hoje que a primeira dor que senti do amor me veio como um golpe de machado, uma flecha que entra no peito e sangra até a morte. Foi à primeira, mas não a última que sentiria, e logo perceberia três coisas básicas sobre essa dor: a ilusão, de que tudo que eu sonhava do romântico e belo poderia cair por terra por quase nada, assim, como Dom Quixote trocava o real pela ilusão sem saber ao certo o que era um ou outro. A segunda era que eu também poderia fazer alguém sofrer, por mais que nem eu mesmo acreditasse nisso; e a pior delas, a esperança, que alimentamos porque não temos outra coisa a alimentar, de fato, não há quem possa dizer “perca as esperanças”, pois precisamos dela para sonhar, e sem sonhos nada somos. Quando penso em quem eu era, o que me tornei por medo de machucar-me, andando como um soldado romano com sua armadura a tentar evitar os golpes, e o que sou hoje, percebo, que vivi coisas horríveis por causa das dores, mas foram elas que fizeram-me dar um passo a frente em busca do meu eu melhorado, autêntico. Não que hoje eu não sofra, mas antes de tudo sei que é preciso compreender a si e aos outros. Talvez ainda não saiba lidar ao certo com algumas cicatrizes, mas não olho elas como feridas de guerra, antes como condecoração pela luta, em que jamais poderei dizer que tive um oponente, tive sim, amores sinceros, em que as lutas não me foram empecilho para amar, contudo, saber amar mais e com compreensão. Tal forma é o grande amor, que poderiam perguntar-me se eu aceitaria sofrer tudo novamente para ter o verdadeiro amor ao meu lado. Sem excitar responderia que sim, pois não a quem pague a felicidade de ter seu grande amor por perto, mesmo que isso lhe cause um grande custo.

Cabe-me então, a incumbência de escrever a mim mesmo sobre minhas dores e angustias, como quem escreve salmos para Deus e/ou poemas as ninfas. Acaso minhas dores não sejam completamente compreendidas é sabido dizer que pelo menos aliviou meu pequeno ser dar tristeza, e quem sabe possa trazer um pouco mais de reflexão nas almas menos generosas, imbecis, e estupidas que circulam nosso meio. Aqui, no entanto, não escrevi nada, nada de minhas verdadeiras dores, até porque não sou um grande escritor, apenas pensei se deveria ou não escrevê-las, se o papel é digno ou indigno de receber as lágrimas que me atormentam, e que custo isso teria pela interpretação errada de algo que nem mesmo pode ser interpretado. Não me importo com os conhecimentos mesquinhos, mas sempre me alegrarei com o afago das almas nobres de coração, que acalentam as dores sem recusa ou compensação, mas trazem consigo o verdadeiro amor e paz.

Mas surge uma questão no final das contas que farei apenas uma breve elucidação. Compreender é aceitar? Esse ponto é muito importante para que possamos ter em mente que a compreensão é um exercício interior, racional, que pode ser demorado ou rápido, mas que é essencial para nos tornamos o que realmente somos e não imagens projetadas e distorcidas de nós mesmos. Às vezes aceitar não demonstra a mínima compreensão, e quando isso ocorre dessa maneira, é como sorvete que derrete sobre o sol, como casa feita sobre a areia, ou edifícios feitos de papelão, não há sustentabilidade. É apenas uma forma simplória de mascarar nossos preconceitos e fobias, nossos julgamentos bestiais, e não querer olhar para dentro de si mesmo a compreender-se. Para aceitar de forma coerente é preciso antes de tudo compreender, pois não estamos colocando o de fora para dentro, mas tirando o do dentro para fora. A recusa aniquila o efeito de compreender, pois como podereis dizer saber outras vontades, verdades, desejos, pensamentos e ações que não sejam a sua própria sem a compreensão. Aceitar sem compreender é uma forma de aniquilação. É desse modo que alguns fazem seus próprios julgamentos, como se também os outros, dada a oposição não o fizessem sobre eles. Como a frase que diz: “não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados; dai, e dar-se-vos-á”.

Aquele que julga sem compreender é como o carrasco da guilhotina que se diz correto, mas não sabe explicar o porquê. Como bem disse Josemaria Escriva: “mais do que dar, a caridade está em compreender”. A gratidão verdadeira não está apenas em reconhecer o bem, em dar algo a alguém, mas, sobretudo em compreender. É preciso que aquele que tenha a verdadeira compreensão antes de condenar possa compreender, possa desculpar e esperar a remissão como ato voluntário de quem se arrependeu, e não fazer estereótipos sobre o ser de ninguém. Ninguém é aquilo que você ou eu imaginamos, as pessoas como tudo estão em processo de mudança, pois não é um ato de maldade que torna alguém mal, nem uma ação gloriosa que torna alguém bom. É melhor e provável dizer que alguém teve seu momento de fraqueza ou de superação. Todos nós estamos propensos a errar e acertar, o crescimento se dar ao longo da vida, junto com o processo de compreensão. É preciso olhar além de si para compreender. “Compreender que há outros pontos de vista é o início da sabedoria.”

Claro que nesse processo não poderemos e não fecharemos os olhos a aceitar tudo, porém, quando agora digo “aceitar” esse já não é mais igual ao anterior, pois refiro-me aqui ao “aceitar” junto e único com o processo de compreensão. Por exemplo, por mais que compreenda os motivos que levou alguém a matar, não poderei fechar os olhos para sua culpa. No entanto, estarei sempre disposto a perdoá-lo, e torcendo para que ele também se arrependa e compreenda seu erro, porque não é uma questão de julgamento, mas de avaliação e de dar créditos ao que esse ser agora é. Posso compreender, por exemplo, que essa pessoa estivesse com seu espírito tomado de cólera e que em um determinado momento não mais se conteve, e cometeu o crime de morte contra alguém. Porém nunca posso condenar tal pessoa a toda a vida ou a todo passado por um único ato errado. E se nós que condenamos e julgamos tivéssemos no lugar de tal pessoa, tendo exatamente os mesmos motivos e relações, poderíamos afirmar com precisão que agiríamos diferentes dela? Quando julgamos fica fácil perceber que colocamos acima de tudo nossos motivos e não queremos nem mesmo observar os motivos alheios. Então como podemos ter ao certo tanta certeza do que afirmamos? No caso do crime de morte, e com o motivo acima citado, teríamos ainda que saber o que causou a cólera, qual o contexto em que aquela pessoa se encontrava, entre outros diversos fatores, para no mínimo podemos compreender de forma mais ou menos justa o crime cometido. Isso não o evitaria de pagar as sanções a ele impostas, mas também não seriamos acorrentados pela idiossincrasia de nosso próprio pensamento mesquinho por não queremos compreender e assim eliminar o sol e a luz para todos. Por isso as palavras do profeta, “não julgueis” para “não serem julgados”, pois nosso entendimento sobre isso é nada ou quase nada, pois não temos as condições necessárias para julgar na máxima intensidade, apenas vemos nossos motivos como certo e disso fazemos verdades.

A compreensão em si mesma é algo muito próximo do que chamam hoje de amor, do modo que, é impossível amar sem compreender, e enquanto não existe compreensão tão pouco podemos dizer que existe amor. E se o amor é o contrário do ódio como dizem, rendo-me a mestria do pensamento de Espinoza, parafraseando-o dizendo: não devemos rir, nem lamentar, muito menos odiar, mas apenas compreender. Por isso é tão difícil falar ou escrever a respeito de si mesmo, pois somos muitas vezes julgados sem sermos compreendidos, nosso interior é um mistério tão quanto nosso espírito, e essa compreensão máxima de nós mesmos talvez nem nós possamos ter, mas é mais fácil que eu compreenda a mim mesmo que os outros que apenas me olham com seus olhos. Posso ainda dizer que a compreensão promove algo fantasmático: a paz. A hipocrisia de alguns reina nesse mundo como uma espécie de verdade, enquanto que a verdade mesma anda solta, pairando no ar, linda e bela, igualmente o artista que tenta expressar suas dores em folhas de papel. Nisso talvez encontre paz, enquanto a compreensão não chega à mente das pessoas.

TAS
Enviado por TAS em 19/08/2012
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