Condição feminina no Antigo Israel

Trabalho apresentado em 13 de julho de 2001, no Curso de Teologia do Instituto São Boaventura e revisto em 2008.

O artigo de Carol L. Meyers, intitulado As raízes da Restrição"*, propõe a revisão do "feminino" dentro do ambiente acadêmico da Teologia cristã. No entanto, parece contaminado pelo neopaganismo em processo de massificação, na medida em que idealiza a realidade antiga, baixo a alegação de uma melhor condição para o exercício da feminilidade em outros tempos. Já tinha dito a poetisa Cora Coralina que no presente se vive infinitamente melhor que no passado. Mesmo porque é no presente que se vive.

A autora introduz seu artigo discorrendo sobre a Grande-Mãe, divindade universalmente cultuada desde há trinta mil anos, na Idade da Pedra. Já no período das grandes civilizações do Bronze, no Oriente Próximo, imagens de divindades masculinas começaram a aparecer ao lado das femininas e evoluíram gradualmente para conotações de superioridade a estas últimas. Portanto, a superioridade, senão a exclusividade da deidade feminina, teria durado mais de vinte mil anos, em contraste com o período de cerca de três mil anos da aparição das deidades masculinas. Meyers desconsiderou o fato de que os homens permaneceram mais tempo sob o poder da deidade feminina do que nós mulheres temos sofrido com a cristalização da ideologia patriarcal.

Desde a Idade da Pedra, a fertilidade e a pretensão de domínio ou influência mágica sobre os fenômenos naturais têm pautado a abordagem humana ao Transcendente. E essas preocupações, como está fartamente documentado, foram temperadas com derramamento de sangue humano em sacrifícios à deidade, cujos adoradores não foram contemplados com uma vida paradisíaca, como se deseja crer atualmente, já que os sacrifícios exigiam práticas de opressão, violência e sofrimento dos mais fracos.

O complexo deslocamento da hegemonia de gênero manifestado na concepção do divino está manifestado no fato no Deus dos hebreus em Pentateuco. Embora masculino, Eli ou Javé revelou atribuições da Deusa-Mãe, pois tinha ingerência sobre a fertilidade humana - prometeu a Abrão dar-lhe uma descendência incontável -; do Egito, tomou a descendência de Abraão pela mão, defendeu-a do opressor, guiou-a pelo deserto, corrigiu-a, cuidou-a, alimentou-a revelou-lhe a ternura de uma Mãe Misericordiosa, toda doação, que conduziu seus filhos a uma terra regada a leite e mel. Já muito antes, nos tempos de Abrão e Isaac, demonstrou que não exigia derramamento de sangue humano.

A autora tratou das transformações no status dos gêneros referentes à instauração do patricardo e ocorridas entre Moisés e David, como carentes de fundamentos bíblicos com foco em Gênesis, capítulos 2 e 3. Ela analisa, segundo uma lógica fundamentada em fatores sócio-históricos e antropológicos, a retração do gênero feminino como resultado da cristalização da ideologia patricarcal. Tal análise omitiu o fator "paradigma edênico", que é dominante em Gênesis e implica em uma noção de tempo quantitativamente e qualitativamente diferenciado - um tempo a que não se aplica paradigmas históricos, já que é pré-histórico, cíclico e mítico.

Opinamos, entretanto, que o versículo 16 do terceiro capítulo de Gênesis oferece os fundamentos negados por Meyers - trata do castigo divino, que recaiu sobre os três atores da cena do pecado. O castigo imposto à mulher atinge justamente o seu desejo que, como uma escravidão ou compulsão, a impele para o homem e a sujeita à dominação de seu parceiro. A hiper-erotização manifestada nos cultos à fertilidade e na iconografia das deidades femininas, tanto sugere como funciona como uma relação de dependência entre os gêneros, com ênfase na dominação e sujeição, que ofuca toda a ostentação de superioridade da Deusa-Mãe em seus milênios de hegemonia.

Quanto aos argumentos que a autora utiliza para afirmar uma situação feminina mais confortável no Oriente Próximo anterior a 1500 AC, cabe a indagação de sua realidade e pertinência cronológica, visto que mulheres com funções sociais e religiosas, no Egito e Mesopotâmia de então, eram da nobreza ou inseridas na hierarquia teocrática das cidades-estado. No Código de Hamurabi, datado de 2300 anos AC, está registrada a evidência que falseia a tese defendida por Meyers, visto que confronta a afirmação da existência de situação mais favorável à mulher antes da dominação patriarcal - trata-se de artigo que transcrevemos: "Se uma sacerdotisa, que mora em um convento, entrou numa taberna para beber cerveja, queimarão esta mulher". Fica claro que a prostituição sagrada poderia bem ser mais uma imposição religiosa opressora que um atributo de independência. Acrescente-se que o patriarcado - apontado como responsável pela suposta opressão feminina de três milênios e que, curiosamente, é alvo, justamente no seio do Ocidente judaico-cristã da atualidade, da crítica pioneira e organizada em movimentos sociais - conseguiu produzir leis bem mais compassivas e respeitosas à mulher que Hamurabi. Exemplo disto é o texto bíblico de Deuteronômio, 21, 10-14, impregnado de poesia e ternura para com a mulher em condição crítica de estrangeira e prisioneira de guerra, em flagrante contraste com a punição cruel e sumária imposta à mulher em melhores condições e inserida na estrutura do templo babilônico, na sociedade pré-patriarcal e urbana regulada pelo Código de Hamurabi.

A autora focaliza Israel no começo da Idade de Ferro, quando da transição do semi-nomadismo para a vida camponesa, ocasião em que um salto tecnológico favoreceu o aumento da produção agrícola em benefício das tribos libertas do jugo fiscal das cidades-estado. Nesse momento à mulher foi atribuído o dever da reprodução e muitas vezes ela assumiu a produção agrária, especialmente em razão dos recursos masculinos serem, periodicamente, carreados para a guerra de defesa. Aquele artigo do Código de Hamurabi, acima transcrito, torna consistente a afirmação de Meyers quanto à ideologia engendrada na cidade-estado cananéia da Idade do Bronze e "produto de padrões multimilenares", com a qual os judeus romperam em função de seu processo de libertação da sujeição à estrutura urbana e militar, que concentrava número maior de mulheres que os nômandes judeus. Compreende-se que a imagem feminina esteve ligada àqueles cultos milenares e, por extensão, à estrutura teocrática combatida pelos oprimidos – em decorrência possa ter sofrido a revanche restritiva e desfavorável. É factível que o esforço de ocupação territorial e exploração agrária empreendido pelos israelitas da Idade do Bronze haja restringido tanto a mulher quanto o homem ao exercício de sua sexualidade no âmbito familiar e para reprodução. Essa pressão por crescimento demográfico esteve agravada pelas condições objetivas da época - baixa expectativa de vida, altas taxas de mortalidade das parturientes e conseqüente escassez de mulheres; pestes, guerras, com acréscimo de outros fatores de mortalidade invencíveis para o homem daquela época, como as doenças sexualmente transmissíveis.

Meyers defende ser a moral sexual bíblica um produto dessas condições de época, portanto virtualmente circunstancial, despojada de autoridade divina, permeável a manipulações ideológicas, intrinsecamente ligada a uma conjuntura histórica superada – em suma, caduca. Ainda que seja admissível, em proporções adequadas e criteriosas, o aspecto circunstancial da moral sexual, há outros fatores a serem considerados para uma plena compreensão da questão, inclusive de natureza psicológica. A avaliação da sexualidade não pode ficar restrita à consideração de fatores sociais – antes tem forte conotação de individualidade, emocionalidade e introversão. A leitura da obra A Tirania do Prazer, de Jean-Claude Guillebaud, revela que o processo histórico de humanização da sexualidade implica a superação da sua instrumentalização para dominação - em seus aspectos de ostentação de poder, crueldade e sadomasoquismo -, em que a contensão moral tem papel determinante. O fato é que essa moralidade revelada pelo Deus Pai, em Israel, destaca-se por contraste daquelas vigentes nas sociedades urbanas da Idade do Bronze e do Ferro.

A autora aborda a época dos Juízes em Israel como o momento em que foi inaugurada a avaliação moral e a dessacralização da prostituição. E afirma que essas retrições estiveram ausentes em momento anterior, à época em que se destacaram as personalidades bíblicas femininas - Tamar e Raab, mulheres capazes de enfrentar sua condição de opressão, lançar reivindicações ou exercer liderança. O discurso da prostituição como detratora da dignidade feminina progrediu rumo à cristalização ideológica patriarcal, a começar pelo afastamento da prostituição do espaço sagrado do Templo e do culto. Em seguida a restrição à mulher hebraica se generalizou até a total circunscrição do exercício da sexualidade ao âmbito da maternidade e matrimônio. E mais, o sacerdócio exclusivamente masculino, em Israel, esteve orientado à pureza do culto e do Templo e contrastou com aquele outro misto, pagão e urbano, cujos rituais envolviam a prostituição de ambos os sexos. Cogita-se que a prole gerada no templo pelas prostitutas sagradas era vista como de natureza semi-divina e destinada ao treinamento para formação de guerreiros ferozes e imbatíveis, a exemplo de Aquiles; era também funcional na reposição demográfica para reforço da capacidade bélica das cidades-estado. As exigências de então, como a de reposição demográfica e estabilidade da organização política, fundada nas figuras de rei, sacerdote e sacerdote-rei, foram sendo introjetados por Israel e tiveram papel determinante na revisão da estrutura tribal e busca de identidade nacional.

Note-se que antes da monarquia israelita, o sacerdócio ainda não se institucionalizara, as mulheres eram prioritariamente destinadas a sua missão de proliferação e, nessa tarefa, estavam ombreadas com o homens como colaboradoras. A Monarquia encetou a institucionalização do sacerdócio e do espaço sagrado – o Templo – onde a ideologia moral se cristalizou em torno da domesticação da sexualidade feminina e o desgaste da condição de mulher-parceira na reconstrução demográfica de Israel. Os reflexos deste fenômeno atingiram a essência romântica-moral da monogamia, que se havia afirmado como uma libertação expressa liricamente no Cântico dos Cânticos, que desvanecia diante da rigidez moralista para instrumentalização da sexualidade. As mulheres líderes do Israel antigo, ao tempo de Moisés ou previamente, foram ficando relegadas ao passado. Aquele Deus que se tinha revelado aos hebreus foi assumindo a forma masculina e guerreira em detrimento da inspiradora ternura e amor daquela divindade que tinha conduzido o povo, alimentado este povo no deserto e acompanhado seu crescimento.

Há necessidade de resgatar este Deus revelado, terno e amoroso, homem e mulher?, nem rigidamente patriarcal nem opressivamente sanguinário como a Deusa-Mãe da pré-revelação? Sim, mas advertimos que tal harmonia não pode ser contida num discurso maniqueísta que vitima a mulher e marginaliza o homem ao estigmatizá-lo como opressor. A linguagem que oferece amplitude para uma avaliação acurada das contradições entre os gêneros é aquela que renuncia à ingenuidade e percebe que homem e mulher podem bailar em alternância das posições de vítima e opressor. E, no ritmo dessa dança, assumir suas fragilidades e capacidade de acertar o passo. Num compasso dialético capaz de sustentar a destinação para uma convivência na justiça e na colaboração.

E aí a Serpente, certamente, vai dançar... E perder espaço para intrigas e manipulações.

*MEYERS, Carol, “As raízes da restrição - As mulheres no Antigo Israel”, em Estudos Bíblicos, vol.20, Petrópolis/São Leopoldo/São Paulo, Editora Vozes/Editora Sinodal/Imprensa Metodista, 1990, p.9-25