“Mississipi em Chamas” (Mississipi Burning)
“Mississipi em Chamas” (Mississipi Burning)
O grande conto de fadas contido nesse banho de chamas, fica por conta da hipótese de que um poder constituído, FBI, possa duelar e por fim suplantar o poder convencional – xerife, capangas, prefeito, klukuxklan, e a própria idiotia e ou perversidade coletiva reinantes no condado de Jessup, Mississipi.
O conto cinematográfico fica por conta da mágica de Alan Parker, e a sua extraordinária capacidade de recriar 1964, não só do ponto de vista decorativo – automóveis, figurinos, eletrodomésticos, etc., mas, e sobretudo, numa outra espécie de mágica que os gringos dominam, e denominam de casting. Não há um único personagem, um único figurante, que não parece ter saído da atmosfera depauperada, tacanha, absurdamente equivocada, daquele condado.
Toda vez que se vê um álbum de fotografias antigas, chega-se na conclusão de que aquelas fisionomias pertencem àquela época. Em Mississipi Burning, a moça que serve café, o sapateiro, o barbeiro, os que dão entrevistas para os repórteres, os fanáticos, os pastores, os velhos conversando na esquina, todos sem exceção parecem ter entrado numa nave e, oriundos desta década conturbada, aterrizaram em Lafayete, Alabama, local do set de Alan Parker.
Ele mesmo acrescenta que foi muito mais difícil recriar 1964, do que se tivesse tentado recriar uma atmosfera de100 anos antes.
Uma vírgula que salta na mente do espectador: 100 anos antes a América se fartou em sangue, em virtude da guerra fratricida, no relativo estopim da abolição da escravatura, e é de se lamentar a postura do branco (hoje chamado de white trash), abastado ou não, face aos irmãos de pele escura, 100 anos depois.
De qualquer forma, os figurantes de Parker dão a autenticidade necessária a um fato verídico tenebroso, cuja insistência em se repetir ao longo do tempo, mesmo que sob outros ditames, nos deixa exaustos, levando- nos a fazer a mesma pergunta que Willian Dafoe
faz o tempo todo: de onde vem todo esse ódio?
Willian Dafoe e Gene Hackman, dois agentes do FBI que se deslocam de Washington para Jessup, ainda sem saber que estavam prestes a entrar num evento de proporções históricas.
Time, Los Angeles Time, Variety, estão de acordo ao classificar o filme como um dos retratos mais poderosos sobre o racismo nos EUA.
Três rapazes do Movimento dos Direitos Civis foram assassinados, somente pelo fato de terem voltado à Jessup, pedir desculpas à comunidade negra, que graças a visita deles, ganhara um incêndio numa de suas igrejas. Assassinos não precisam de desculpa.
Palavra que, hoje em dia, ao me deparar com parte dos descalabros hediondos via TV, sinto uma certa paz, errônea, mas não vazia, quando a própria TV conta: membro dos Direitos Humanos indagaram sobre...Dá a impressão de que uma parte da sociedade tem uma preocupação real e ativa, quando os ogros se manifestam além da imaginação. Os três rapazes haviam estado anteriormente em Jessup, para conscientizar a comunidade negra sobre seu direito de ir às urnas. Jovens, idealistas, não sabiam o perigo que corriam, e pagaram com a própria vida.
Frances MacDormand, dada altura, desabafa para Hackman: você não nasce com o ódio. Ele é ensinado. E, aos 7 anos de idade, depois de usarem até a Bíblia para justificar, você acredita em tudo que disserem.
Difícil afirmar que este seja o melhor papel de Gene Hackman, um cara que já havia levado a Palma de Ouro pelo filme “O Espantalho”, já havia obtido o merecido destaque com “Operação Franca” e “A Conversação”.
Ninguém fala nada sobre os 3 rapazes. O FBI, com a ajuda de reservistas da marinha e da própria mídia, tenta achar os corpos, que todo mundo diz estarem vivos, saudáveis e se divertindo, tomando uma cerveja em Chicago, e que toda essa operação não passa de um golpe publicitário.
Quando a luz aparece, a sombra se agita. Os maníacos de Jessup intensificam sua barbárie, nas barbas dos federais, “pois ninguém vais nos dizer como lidamos com os nossos negros”. Se o espectador não tiver uma suástica no bolso do paletó, ele vai se mexer na cadeira, desconfortavelmente, porque filmes muitas vezes são verdadeiras lições de história, e como já disse um dos mais conceituados historiadores de todos os tempos, há 300 anos atrás, “a história nada mais é do que o relato de crimes e loucuras da humanidade”.
Cinema bom de ver e rever, o filme teve 6 indicações mas só levou a estatueta da fotografia. No problema, o machado de Alan Parker fez uma pertinente rachadura na hipocrisia de então, e com certeza nas póstumas.
- Esse saco de gatos só abre de dentro para fora – rumina Dafoe, na melhor fase de sua carreira. Ele e Hackman são a dupla água e vinho não pasteurizada. Defoe faz o chefe que anda na linha, mas não brinque com ele. Hackman, o subordinado, e formado na velha escola do ou vai ou racha, já sabe que ali não tem como jogar pelas regras. Nasceu no Mississipi, conhece a loucura e tem histórias a respeito, desde a infância.
Quem dá o serviço é a Frances, esposa do assistente do xerife, e ela vai pagar um preço caro pela delação. Até que isso aconteça, igrejas são queimadas, pessoas perseguidas, e o conto de fada da suposição de que nos dias de hoje, a existência de um poder constituído possa, através da ação justa, frear a barbárie nada diferente de 1964, dá ao espectador um alento fugidio, além de um excelente filme.