The passion, uma leitura crítica 3

Ao longo da atenção que dediquei a uma segunda sessão de The Passion deixei de lado a observância às questões morais e políticas de seu argumento – muito controversas e com tendência à manutenção de preconceitos – e dediquei minha atenção aos seus aspectos simbólicos, artísticos – na Verdade o que mais me interessa. Chamou-me a atenção o que Gibson quis nos mostrar através de sua obra, das incomodamente belas imagens que produziu a contar sua versão da história da condenação e morte de Jesus.

Agora, procurarei desvendar as mensagens e os significados de seu filme através da atenção a sua estética, segundo o filósofo alemão Hegel, linguagem fundamental do Espírito. Ou seja, a observação do conjunto dos detalhes imagéticos que compuseram seus enquadramentos, ângulos, iluminações, fusões e movimentos de câmeras à expressão de seus sentidos (sem desconsiderar a imprescindível primorosa interpretação de seus atores e de sua trilha sonora).

Em minha opinião – contrariando a de muitos - The Passion é um filme excelente. Gibson construiu uma obra plástica rica em detalhes expressionistas, místicos, simbólicos, de rara beleza, mesmo que não concorde com a manutenção de certas cenas que, no filme de Gibson (como em muitos outros), nos falam sobre os benditos “milagres” realizados por Jesus. Porque, ao meu ver (e no de muitos), eles são somente empecilhos à compreensão da participação verdadeira do Salvador em nossa realidade histórica, além de reforços ilusionistas àqueles com tendências supersticiosas.

Aos mais atentos, e sempre com tendências subliminares, as imagens produzidas sob a batuta de Gibson podem revelar mais sobre as verdades profundas do universo mítico-místico-cristão que o filme pretende expressar do que, por exemplo, os longos, explícitos e incômodos momentos da exausta flagelação de Jesus – entre outras representações da crueldade demoníaca, aqui e ali no filme estampada em detalhes. Por exemplo, os sorrisos perversos de certos curiosos e dos desumanos carrascos torturadores de Jesus, entre os quais anda o diabo a apreciar o seu martírio.

Em meio ao frio nevoeiro das primeiras horas do dia em Jerusalém, sob um céu clareado por uma lua cheia, digna dos melhores filmes de terror, Gibson mostra Jesus (Yeshuá) orando a preparar-se para o martírio que sente estar próximo.

Na floresta nebulosa construída por Gibson, depois de encontrar dormindo os discípulos, Jesus pede para que outra vez permaneçam atentos, e que orem, enquanto continuará sua sensível experiência premonitória e fazer suas súplicas ao Altíssimo-Profundíssimo sob a lua – que, na verdade, também parece refletir a luminosa divina presença.

Enquanto Pedro observa espantado o estado emocional de seu mestre, um pássaro gralha entre as sombras anunciando a presença do diabo (ele mesmo também uma delas), que Gibson imaginou um andrógino de palidez mortal, de olhos azuis enigmáticos, coberto por uma manta escura como o abismo infinito onde, malgrado sua incômoda presença tenebrosa, brilham as estrelas.

Graças a sua aparência atraente poderíamos conferir ao diabo de Gibson atributos superficiais de Beleza – se, em Verdade, conferir-lhe belos atributos não lhe fosse absolutamente inapropriado, uma vez que nossas noções de beleza estão fundamentalmente relacionadas à expressão substancial de uma boa alma, o que caracteriza o caráter dos chamados “Filhos do Céu”.

O maligno vem a duvidar ser Jesus capaz de cumprir sua difícil missão de cordeiro expiatório ao livramento dos pecados do mundo, coisa que, segundo ele, ninguém, na infinita história das lutas entre as trevas e a Luz, fez ou fará. “Jamais” – garante o anjo decaído.

O diabo pergunta a Jesus quem é, afinal, seu Pai e quem ele, Jesus, pensa que é, enquanto, num close gótico-expressionista, Gibson concebe a imagem de uma quase imperceptível larva a sair e entrar pela narina do tinhoso, inequívoca (embora sutil) alusão que faz sempre o diabo à existência finita de todas as coisas (incluindo-se talvez mesmo a de anjos como ele), da condenação à podridão e à aniquilação a que estão submetidas todas as coisas organicamente constituídas; entre elas, nós em nossa entrópica orgânica condição.

Creio que o objetivo da diabólica cena dirigida por Gibson é lembrar ao seu Jesus – e a todos nós, angustiados espectadores das jesuínas angústias – que, apesar de chamar por seu “Pai”, Jesus não O conhece e, portanto, não pode saber sobre a natureza do fundamento de seu próprio ser, do Ser de tudo e todos que, para o diabo, como o dele mesmo, nada mais é além de uma mera idéia submissa às fraquezas de um corpo fadado a ser transformado em pó.

A resposta sobre a impossibilidade de livrar-Se de Sua passagem pelo inferno enquanto “Jesus”, Deus dá a Si mesmo através do filme de Gibson (então Seu mimético representante) com a cena da já tênue luminosidade da lua sendo momentaneamente encoberta por densas nuvens negras que, então, O respondem com mais sombras sobre as questões que, na condição de Jesus, O incomodam carnal, humana, angustiada e momentaneamente.

Com a força e a determinação conferida exclusivamente ao super-homem como só Jesus pôde ter sido (embora, mesmo um "super-homem", tenha estado fadado a experimentar, como nós, a angústia e o desespero diante do sofrimento por vir), ele termina por reagir às investidas do diabo e esmaga a cabeça da serpente que, sorrateira, dele se aproxima a lembrar-lhe daqueles, prestes a capturá-lo à morte submissos à força de instintos bárbaras, condenados a “rastejar” sobre a superfície da terra como as serpentes, sem que nunca alcancem (sequer em sonhos) a visão beatífica daquele Reino que, desde o princípio, anda a Se estender do céu à Terra.

Continua.