Febre do Rato

ESTRUTURA DA LIÇÃO

O filme, misturando performance teatral com redenção, medo com penúria, poesia com crises obsessivas de anarquismo, é o exemplo de estrutura bem acaba e que definitivamente excede as categorias de apelo publicitário para, enfim, erguer-se frente às obras que possuem o brilhantismo exato, sem ser piegas, prosaico ou conferencial.

Caracterizando as personagens, fica latente, desde o início, uma espécie de renúncia paliativa, que paira em todas as cenas, despejando suas doses de nojo entranhadas nos atores e coadjuvantes, de modo que, em contrapartida, as consequências dessa latência dúbia, experimentada muitas vezes diante de uma realidade desencontrada, embora recíproca em sua densidade bairrística, é exemplo notório de como o filme vai configurando até a agonia das próprias relações a náusea, veiculando um sentimento de assepsia que, enfim, não existe.

Outra forte característica compensatória de um enredo que, a rigor, estrutura-se de modo caótico, é sem dúvida o tipo-cenário. Aliás, esse que se desconstrói com rara beleza e imprime às cenas valores que prenunciam não apenas o caos de sua origem, mas que, no fundo, não consegue imprimir dignidade às vozes suburbanas, tangenciadas e esquecidas entre guetos miseráveis, onde a droga corre solta, sem a intervenção estatal ou qualquer saneamento básico. O tipo-cenário, nesse sentido, sofre uma retaliação conservadora em suas forças reacionárias, e, adjunto dessa realidade desgraçada, não consegue realizar os projetos insuficientes de suas ideias, ancoradas não no intelectualismo, mas sobretudo na prática, na vivência, nos costumes em que está habituado.

Ante estas frentes, o filme promove uma espécie de renúncia coletiva, à medida que as personagens, contagiadas pelo movimento em contínuo do drama das favelas, não conseguem realizar-se como indivíduos ante sua própria liberdade, consumindo, para tanto, a poesia, a anarquia, objetos forçados que, encarcerados também pela presença inconsciente do Estado, é mais um jogo obsessivo no sentido de restaurar sua parcela perdida de dignidade, embora, é fato, esta proposta seja ignorada pela multidão, apenas pressentida por uma parcela muito pequena daquele povo sofrido e marginalizado. Essa renúncia, portanto, visa valorizar o que se perde ao longo de todo o filme – mais que a dignidade concedida, é uma ruptura em relação à transcendência coletiva, emancipando sua estrutura íntima, até então reconstruída a duras farpas.

Sobram, a partir de então, favores concedidos à política anárquica. A matéria central, o que vitaliza as relações e funciona como uma medula central são justamente os favores dessa política anárquica, que, entendida bem, é o receptáculo das representações individuais, sedimentando o uso de sua força própria, anti-vulgar, e que, ao cabo, organiza o movimento para além da presença/ausência de um estado que, como se vê, mal se mostra, apenas nos momentos de profunda repressão, frente ao conservadorismo pertinente de sua condição. São favores que, mais que o limite da disposição impõe à realização conjunta, apela para a individualidade que não se interpõe no massacre subjetivo, sobre excedendo portanto os desejos em conjunto, a coletividade que quer, também, sua parcela de liberdade, seu dom de amar sem exigir nada em troca, exceto liberdade.

Por fim, o anarquismo representado pelas plebeias tentativas de organizar um movimento e distribuí-lo aos bairros pobres e nobres da cidade. Essa reavaliação condiciona o despojamento das classes, embora, a rigor, não consiga arregimentar quase ninguém, a não ser aqueles que, desde o início, estavam em volta desses projetos do descambo.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 03/07/2014
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