Boyhood

Admito que nunca fui o maior dos cinéfilos. Longe disso. Menos pela nobreza da sétima arte e mais por algum distúrbio neurológico que não permite que meus glúteos fiquem mais que duas horas imobilizados sob o abafado chenille rugoso do sofá.

Via com um certo exotismo aqueles seres que numa manhã ensolarada de sábado alugavam meia dúzia de filmes para assistir no final de semana. Sempre me pareceu uma extravagância passar 12 horas com os olhos grudados numa tela, ainda que hoje eu gaste mais do que isso em telinhas bem menores.

Além disso, há hoje outro problema maior e aparentemente incontornável. Estou envelhecendo, ficando cada dia mais xarope e cricri.

Não tenho mais paciência para aqueles blockbusters americanos, com suas tramas previsíveis, seus personagens maniqueístas e inverossímeis, em que tudo segue uma fórmula planejada e reconhecível, como a junção de dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial num pão com gergelim.

Mas também não tenho saco para assistir aos filmes noir franceses, com sua densidade existencial nihilista, em que quase nada acontece ao longo de sete horas de filme. O cara sopra uma baforada de cigarro no ar e a câmera vaga no ar (noir?) tentando perscrutar em slow motion alguma centelha oculta de transcendência filosófica, enquanto a fumaça se esvai por intermináveis minutos.

Tenho achado chatos os filmes que a crítica recomenda e tolos os filmes que o público adora, o que só reforça a obtusidade irreversível da minha chatice senil.

Sinto saudades daquela época em que me deleitava com as marmeladas do 007, que escapava da artilharia de seiscentos homens armados do exército russo, lutava sozinho contra 137 samurais ensandecidos, pulava de para quedas antes que seu avião explodisse, e quando seu carro caía na água apertava um botão e este virava um submarino. O máximo do absurdo, mas eu não dava a mínima.

Mas eis que recentemente assisti ao filme Boyhood (que no Brasil monolíngüe recebeu o pleonástico complemento “Da infância à juventude”), do diretor Richard Linklater.

Três horas de filme, em que praticamente nada acontece, pelo menos para os padrões de Hollywood. Nenhum carro capota, nenhum helicóptero explode no ar, nenhum terrorista islâmico decide implodir a sede da Coca-Cola em Atlanta. Não tem o Jim Carrey fazendo caretas nem tampouco a Julia Roberts casando no final do filme.

Mas também não chega a ser o nada absoluto dos filmes europeus cabeçóides, em que nada acontece mesmo.

E, mais estranho de tudo, eu gostei.

Um filme que fala da vida comum de pessoas comuns. A beleza que se esconde por trás das coisas miúdas.

Lembrou-me uma frase genial do poeta Manuel de Barros, falecido recentemente:

“Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei.”

Apesar do roteiro aparentemente desprovido de maiores truques, o projeto revoluciona por uma proposta pra lá de ambiciosa. O filme conta a trajetória do menino Mason dos 6 aos 18 anos e foi rodado ao longo de 12 anos, sempre com os mesmos atores, um projeto experimental tão ousado quanto arriscado. Afinal de contas, nestes tempos apressados, nada mais improvável do que um projeto tão dilatado no tempo, sem qualquer certeza de êxito ou de que as crianças envolvidas teriam talento ou encampariam a ideia pelos anos seguintes.

Mas o risco foi recompensado. O que se vê na tela é a vida correndo seu curso irrefreável. Testemunhamos doze anos da vida de um garoto enquanto esses anos de fato se desenrolam, o que confere ao filme um realismo incomum. Ficção, mas com a verossimilhança de um documentário.

Durante quase três horas, nada de muito sensacional ou inesperado acontece (o que certamente decepcionará os viciados em adrenalina e variações de andamento), apenas os eventos típicos que marcam essas fases da vida. As amizades, a família, os relacionamentos turbulentos da mãe, o pai um pouco desajustado (mas amoroso ao seu modo), a escola, os primeiros amores, a busca de uma profissão.

Apenas a beleza vulgar da vida, essa coisa que o cinema americano, tão preocupado com peripécias grandiloqüentes, nunca se preocupou em retratar. Os personagens são bastante humanos, sem os estereótipos típicos que os apressam em rotular como bons ou maus. Tudo embalado por uma excelente trilha sonora (que mistura de Bob Dylan a Foo Fighters), belas tomadas e um roteiro que parece um pouco solto e desconcatenado, mas que no final das contas faz todo o sentido. Apenas o desenrolar da vida, com todas as retas e curvas do caminho.

Um filme que arrebata pela delicadeza, porque fala simplesmente da vida, e da extraordinária beleza que se esconde por trás das coisas ordinárias.