QUE HORAS ELA VOLTA?

Eu era uma menina de cidade pequena, crescendo em uma casa ampla, na qual os muitos anos de paredes despidas de tinta foram testemunhas de que o luxo não era a tônica da nossa família. Meus pais eram guerreiros na luta diuturna pela educação, em uma escola pública do estado dividido entre minas e gerais. Minha mãe, que sempre guardou semelhança com as árvores centenárias – gigantes acolhedoras dos muitos e anônimos pássaros da natureza (minha mãe nunca estabeleceu hierarquia entre os pássaros) – expandia-se, ainda, até a FEBEM, de onde, como orientadora educacional, trouxe às três filhas o convívio com meninos cujas mães ali o deixaram por um ou um milhão de motivos que a linearidade de qualquer raciocínio binário ou cartesiano nunca poderá explicar.

A partir daí, o trabalho sempre nos foi uma palavra muito habitual...nossa mãe trabalhava três turnos...as mães de alguns daqueles meninos os deixaram para trabalhar...mulheres trabalhavam em nossa casa para que nossos pais pudessem trabalhar. Nossa casa, todavia, não escapou à arquitetura da maior parte das casas e apartamentos de classe média e alta de nosso país: havia nela o quarto dos fundos, o quartinho de empregada.

Sim, eu era apenas uma menina de cidade pequena, sem sonhar, ainda, com as trilhas do direito, da filosofia e da literatura, quando, na pureza nada desatenta da criança, no criançamento do espanto, lancei meu pai contra o peso da história (uma história que eu só viria a conhecer mais tarde e levariam outros tantos anos para compreender e outros tantos mais para pensar a necessária desconstrução) e perguntei: por que os quartos das empregadas são nos fundos da casa?

Meu pai que não estudara Aristóteles, como eu viria a fazê-lo, deu-me a prova cabal do quanto estamos, de maneira consciente ou inconsciente, vinculados à tradição à qual pertencemos, quando respondeu, no eco do estagirita: cada ser tem seu lugar, minha filha. Meu avô, que estava por perto, ainda completou, para enfatizar, como se quisesse que eu nunca esquecesse: a natureza é sabia, minha neta.

Eu nunca me convenci com aquela resposta, mas as coisas não mudaram lá em casa pelas minhas dúvidas infantes, como de resto, não mudaram até hoje em boa parte da arquitetura das casas de classe média e alta brasileira (embora tenha se tornado um pouco mais difícil tratar essas classificações sociais). As empregadas continuaram a dormir no quartinho dos fundos e a almoçarem depois de nós. Devo registrar, contudo, em nome da justiça, que nunca existiu em nossa casa qualquer diferença entre o que comíamos e o que as empregadas comiam. Talvez porque minha mãe via o sagrado na comida. Em nossa casa, até os gatos de meu avô comiam como nós, o que levou nossa mãe a dizer, por incontáveis vezes, no tom da alegria que lhe era tão habitual quanto o trabalho, que na próxima encarnação iria nascer gato do vovô.

Os fundos ainda são o lugar de Val (Regina Casé), no filme de Anna Muylaert, Que horas ela volta? (Brasil, 2015, Drama, 110 min.), que está a retratar a condição de milhares de domésticas de nosso país que vivem, no concreto de suas vidas, a filosofia dos “lugares naturais” de Aristóteles. Val é nordestina, como boa parte das domésticas da cidade de São Paulo, para onde se mudou com vistas a tentar melhorar a vida de Jéssica (Camila Márdila), sua filha, que deixou sob os cuidados de uma conhecida, em Pernambuco.

Val é uma daquelas empregadas que “vive” integralmente na casa de seus patrões, já que dorme no trabalho e até trabalha como cozinheira e garçonete nas festas dadas pelos patrões – mesmo que isso possa parecer um espécime inexistente, em países de primeiro mundo. Ela chegou para ser babá de Fabinho (Michel Joelsas), quando este era ainda um bebê.

Na película, Fabinho está na iminência de prestar vestibular, quando Val recebe um telefonema de sua filha Jéssica (Camila Márdila) que quer vir para São Paulo, também para prestar o vestibular. Val consulta sua patroa, Dª. Bárbara (Karine Teles), sobre a possibilidade de receber Jéssica por uns dias, o que resta consentido, sem que ambas soubessem o que as esperava. De um lado, Jéssica sequer sabia que sua mãe morava no quarto dos fundos da casa dos patrões. Dª Bárbara, por sua vez, passa a se sentir incomodada com a presença de Jéssica, que circula livremente pela casa, sem perceber “o seu lugar”.

A grandeza do filme reside no confronto entre o olhar de Jéssica, sobre o mundo, e o olhar de Val e seus patrões, Dª. Bárbara e Sr. Carlos (Lourenço Mutarelli). Quando Jéssica é apresentada para a família e eles a perguntam para qual curso ela quer fazer vestibular, a resposta “arquitetura” deixa a todos pasmados, exclamando ser o curso mais difícil da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). Perguntada sobre a razão pela qual quer cursar arquitetura, Jéssica dá uma resposta que mostra como a escolha deste curso para integrar a trama nada tem, por parte de Anna Muylaert, de aleatório: a arquitetura tem um papel social.

Que horas ela volta? convida, pois, a pensar a arquitetura das relações sociais que, a despeito da ruptura conceitual com a categoria do destino, na Modernidade, ainda conserva, no imaginário coletivo, sobretudo no tocante ao trabalho doméstico, a definição de “lugares naturais”. É absolutamente perturbadora a cena em que Jéssica (indignada com a aceitação de Val por sua posição subjugada e com a afirmação de que ela não possa tomar o mesmo sorvete que toma Fabinho) pergunta para Val em que livros ela aprendeu que as pessoas são diferentes assim.

Nunca é demais lembrar que a definição de “lugares naturais” guarda relação, ainda, a partir da mesma filosofia de Aristóteles, com a distinção entre os homens (zoon politikon – animais políticos) e os animais, a partir da qual se sustentou, durante séculos, a escravidão e o lugar da mulher como mera procriadora. Sim, escravos foram tidos como animais e isso está nada distante da ordem que a patroa de Val dá para que esvaziem a piscina, sob a alegação de que vira um rato dentro d’água, depois que Jéssica é jogada na piscina por Fabinho e um amigo, e ficam ali a brincar por alguns instantes.

Na fotografia do filme, a exuberância dá lugar ao retrato de um cotidiano que, aos poucos, vai desvelando o que está encoberto pelo “lugar da normalidade”: o desprezo e a indiferença pelo outro, em relações sociais hierarquizadas; o casamento de aparências; a lógica do capitalismo e de tudo o que o dinheiro pode (ou não) comprar. E ficará registrada para todo o sempre na memória do expectador a cena em que Val entra, pela primeira vez, na piscina da casa dos patrões e se coloca a brincar com a água e a ver as estrelas. Ela começa a entender que é gente e que pode sonhar!

Que horas ela volta? é a pergunta que Fabinho fazia à babá sobre que horas a mãe voltaria do trabalho. É, também, a pergunta que Jéssica, deixada aos cuidados de outra mulher, se fazia sobre quando Val voltaria de São Paulo. A pergunta que o expectador se fará, todavia, ao longo e ao término da sessão, quando a sala escura coloca em evidência nossos fantasmas coletivos e pessoais, é: que horas ela virá? Ela, a mudança, a arquitetura porvir, os lugares naturais desconstruídos, o direito de sonhar e ser, a partir de escolhas livres. Que horas ela virá?...ela, a realidade das palavras que o texto constitucional chama de dignidade humana? Não a deixemos mais tardar.