CAROL

O fantasma da delicadeza

“Eu quero ser escritor. Por isso assisto a filmes”. A frase é de um amigo de Therese Belivet (Rooney Mara), em uma conversa casual, entre amigos, num bar de Nova York, na década de 50, quando falavam de trabalho e projetos futuros. Therese registrou o momento em sua câmara polaroide, que viria a ser substituída por uma moderna Cannon, evidenciando a metalinguagem na película: imagem revelando imagem, na belíssima fotografia do longa no qual Therese, a coadjuvante que nada tem de coadjuvante, divide o protagonismo com Carol Aird (Cate Blanchett), em Carol (2015), um filme de Todd Haynes, baseado no romance “The Price of Salt”, de Patricia Highsmith.

Há muitos motivos pelos quais se pode assistir a um filme. Por vezes, motivo nenhum, o que se torna magnífico, em tempos dominados por um pragmatismo que insiste em significar ações, gestos e o próprio tempo sob a perspectiva de um utilitarismo avassalador, que exige de todos e tudo um resultado prospectivo, um ganho visível, um valor quantificável. Em qualquer caso, com ou sem motivo, o cinema é sempre um movimento, na tela e no telespectador, qual é, aliás, o próprio significado etimológico da palavra, já que ‘cinema’ vem do grego Kinema, que significa ‘movimento’, relacionado a Kinéo, que significa ‘mover’, ‘por em movimento’.

Que o cinema nos coloca em contato com uma ideia de movimento, então, o próprio termo o diz, o que se confirma em Carol, onde a técnica que caracteriza o cinema como arte, qual seja, a de múltiplas montagens e edições (que imprimem o movimento), aparece de forma esplendorosa na belíssima fotografia, na trilha sonora precisa, no requintado resgate de objetos e imagens da década de 50 (arquitetura, figurino, carros, telefones, vitrolas, cigarros... tudo impecavelmente retratado) de maneira que não é preciso motivo algum para assisti-lo que não seja a própria fruição das montagens que, por si só, lhe daria sentido.

A existência de motivos, todavia, se houver, não pode levar ao erro grosseiro de pensar que Carol seja simplesmente um filme sobre uma relação homoafetiva e todas as dificuldades que lhe seriam peculiares, em ambientes de preconceito, sobretudo na década de 50. Carol é, antes de tudo, um filme sobre a magia dos sentidos, a força do olhar, a incandescência do toque sutil, o estonteamento do cheiro, as vibrações do paladar, a penetrante inspiração musical. Só depois, Carol é um filme sobre o amor, o que, todavia, transcende em muito o equívoco de rotulá-lo aos limites de uma relação de gênero. Carol é um filme sobre o amor genuíno... para além das definições de gênero, para além da idade, para além das posições sociais, para além do tempo...o amor que deixa ir... o amor que espera em silêncio... o amor que presenteia com a liberdade... o amor que faz concessões, pelo ato mesmo de amar e, sem qualquer contradição, o amor que não pode ser sem, antes, conhecer a si mesmo ...o amor que não busca no outro o preenchimento de si, mas o gozo da existência e do encontro, na arte dos encontros e desencontros, de que já falava o poetinha.

E sabendo-se que toda sessão de cinema traz à tona, espectralmente, a imediatidade das emoções e das aparições, como lembra Derrida, que se imprime na tela e no espírito (corpo, desejo, memória) dos telespectadores; e que cada expectador (singularmente) e todos (coletivamente) projeta (m) algo de íntimo na tela, ao mesmo tempo em que esses fantasmas se cruzam na representação coletiva, pode-se dizer que Carol (re) acende, para além do tema do preconceito e das limitações sócio-históricas em torno da homoafetividade, o fantasma da delicadeza (ou falta dela): a capacidade de ser e amar com delicadeza de trato e beleza. Sim, quando a montagem se encerra, sob o extasiante encontro de olhares entre Carol e Therese, nenhum expectador sai ileso da sala. Ao contrário, todo o movimento havido na tela movimenta a todos, em voz alta ou em silêncio, a perguntar: em que mundo foi parar a delicadeza?