Filhos da Esperança (Children of Men, 2006) de Alfonso Cuarón

TENTE MUDAR O AMANHÃ

Uma distopia. Uma ficção tão real quanto a própria realidade, onde o “herói” não usa armas, nem mesmo botas. Apenas corre para salvar sua vida, calçando chinelos Havaianas.

Baseado no livro The Children of Men, de P. D. James que, infelizmente, não conta com tradução para o português, o filme dirigido por Alfonso Cuarón traz um futuro próximo, ambientado na Inglaterra de 2027. As pessoas não conseguem mais ter filhos e o cidadão mais novo do mundo possui 18 anos. O filme mescla os problemas já existentes à época em que foi produzido com o agravante da ausência de crianças, que reforça o tom de apatia da população global.

Uma das minhas críticas aos blockbusters atuais passa longe de uma direção ou roteiros fracos, acho legal ver um filme de forma descompromissada. Porém, dos últimos filmes de ação que lembro de ter visto no cinema, o que mais me incomoda é o excesso de cortes e planos fechados. Na franquia Transformers, costumo dizer que existem cenas que não consigo entender, visualmente falando. Falta um pouco mais de desenvolvimento, de respiro.

E é exatamente isso que Filhos da Esperança traz, ele tem respiro, quem ficará sem folego é o espectador. Quando o assisti pela primeira vez, há oito ou dez anos, não havia reparado muito nesta questão técnica. Contudo, ao longo do tempo, acabou figurando em listas que elencavam filmes com memoráveis planos-sequência.

Conferindo o filme pela segunda vez, o primeiro pensamento que me veio a mente foi: Por que demorei tanto para revê-lo?! O segundo foi a constatação de que este é um filme para ser visto várias vezes. Não apenas para apreciá-lo reiteradamente, mas para absorvê-lo. Para explicar, farei uma analogia com os vídeos filmados em 360 graus. Tais vídeos permitem ao espectador um ponto de vista fixo ou alternado. Mas é certo que não será possível ver todos os detalhes assistindo uma única vez.

Assim acontece com Filhos da Esperança. O filme possui várias camadas e sinto a necessidade ou, ao menos, a vontade de assistir uma vez para prestar atenção em cada uma delas, separadamente. Visualmente, temos o primeiro plano que nos mostrará os personagens principais da trama. Já no segundo plano, temos uma história paralela sendo contada através de placas, sinais, pichações, grafites, avisos, propagandas, signos etc.

E, depois de notar isso, é interessante ver como o diretor brinca com esse detalhe, fazendo a câmera deixar de seguir o protagonista e voltando suas lentes para elementos que, antes, estavam em segundo plano. Como no momento em que Theo passa por vários refugiados contidos em gaiolas. A câmera soa como uma criança passeando e que se solta das mãos dos pais, andando na direção contrária.

Falando em signos, existem vários. A exemplo das representações artísticas em quadros e esculturas clássicos, até o porco inflável fazendo alusão à capa de um álbum da banda Pink Floyd. Um deles me chamou bastante atenção: a cena em que Theo e uma ex-parteira estão dentro de uma antiga escola infantil, olhando a jovem Kee. Do ponto de vista do espectador, é possível ver Kee através do buraco de uma janela que está toda empoeirada e opaca. O buraco na janela tem a forma de uma gota. Seria a mensagem de que Kee é uma gota de esperança que temos? Ou apenas muita viagem da minha mente?

Outros detalhes interessantes são colocados, como o personagem Theo usando uma camiseta onde lemos “LONDON 2012”. Algo bem sagaz, pois, apesar de a referida Olimpíada ter ocorrido seis anos após o lançamento do filme, já estava no cronograma e o diretor ou sua equipe usaram isso a seu favor, dando ainda mais realismo ao filme. Sobretudo, para quem o assiste hoje.

E é exatamente neste ponto que o filme mais nos impacta. Ao assisti-lo em 2017, podemos ver, no mundo real, diversos temas que foram abordados. A questão dos refugiados, xenofobia, convulsões sociais, mudanças climáticas etc. Sempre encarei as distopias como 1984, de George Orwell, como um alerta para que não deixemos certas coisas acontecerem ou para evitar que erros do passado se repitam. E me parece que o mundo ainda não tirou uma lição de Filhos da Esperança.

Quanto a questão de natalidade, podemos ficar tranquilos. Não estamos à beira da extinção. Por outro lado, a gravidez não desejada / não planejada contribui para superpopulação, desestabilização e um baixo nível de qualidade de vida e de desenvolvimento humano. Através de um extremo, o filme deixa claro que este outro também nos é prejudicial.

Some isso ao modelo insustentável de consumismo exacerbado, para o qual não existem fronteiras. Para as pessoas, muros continuam a ser erguidos. Aliás, em meio à decadência e falta de perspectivas, o filme brinca com tudo isso e também transforma o suicídio em um produto: Quietus. Pois todos queremos uma morte tranquila e serena e não sofrendo com dores ou tubos enfiados no nariz, como diria Antônio Abujamra.

Filhos da Esperança carrega em si alta qualidade nas questões estritamente cinematográficas, mostrando que é possível unir arte e entretenimento em um filme inteligente, que pode ser apreciado por todos, não apenas por uma “elite intelectual”. E vai além, por ensejar um amplo debate sobre o mundo contemporâneo. Dentro dos quesitos descritos neste parágrafo, coloco-o no mesmo rol de filmes como Tropa de Elite e Tropa de Elite 2.

O título da resenha é uma alusão à música “Amanhã”, da banda Cólera:

"[…] Não, não é filme, é o futuro

Nossos filhos vão se matar

Por nada  —  por nada!

Tente mudar, tente mudar

Tente mudar, mudar o amanhã

Tente mudar!!!"