SUPREMA: a vida é a transformação

A lei da vida é a transformação. Foi o que demonstrou o químico francês Antoine Lavoisier, que em 1777 comprovou que processos como a combustão e a oxidação ocorrem a partir da combinação do oxigênio com outros elementos, e que a massa dos produtos da reação era igual aos que deram origem à ela. Era o princípio da conservação de massas, conhecido pela frase "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".

Desde muito antes, porém, lá na tradição grega, Heráclito de Éfeso já enunciara que “nada é permanente, salvo a mudança”. Para o filósofo pré-socrático, a vida é um fluxo perene em que tudo constantemente se transforma (“tudo flui e nada permanece”). A vida, metaforicamente falando, é como um rio, o que nos leva a outra famosa citação atribuída ao autor (e que mais tarde ecoaria na voz de Tim Maia, em “Como uma onda”): “Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece, já não se é o mesmo, assim como as águas já serão outras”.

Essa fluência, defendeu Heráclito, acontece porque tudo é regido pela dialética, pela tensão e pelo revezamento entre opostos, pelo combate entre os contrários, interdependentes e em luta permanente.

E, de certa forma, é exatamente sobre isso tudo que trata o filme “Suprema”, lançado em março deste ano e dirigido por Mimi Leder: a transformação, o choque entre dois polos opostos, um representando a mudança, outro a tentativa de conservação de algo que, na prática, já não existe e representa uma distorção da realidade (e a realidade, para Heráclito, é essencialmente a mudança, a transformação).

Apesar do título no Brasil, a obra não foca tanto em como Ruth Bader Ginsburg, protagonista da historia, se tornou uma das primeiras mulheres a ingressar na Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas mostra seus primeiros passos no ofício da advogacia e sua luta como advogada dedicada à defesa de outras mulheres, lutando contra distinções de gêneros então previstas na lei estadunidense.

A obra começa retratando os anos 1950, quando Ruth ingressa no curso de Direito da Universidade de Harvard. Sua trajetória é marcada pela desigualdade de gênero: mesmo sendo a melhor aluna, não consegue vaga em escritórios de advocacia e acaba se vendo obrigada a trabalhar como professora, em substituição a um professor negro.

A situação começa a mudar quando Martin, seu marido e especialista em direito Fiscal, aparece com um curioso caso de desigualdade de gênero, no qual um homem solteiro contratou uma cuidadora para sua mãe doente, mas teve a dedução de impostos negada. E negada pelo simples fato que ele era homem e nunca havia se casado, já que a lei previa o direito/benefício às mulheres, aos homens viúvos, divorciados ou que tivessem esposas incapacitadas ou internadas.

Essa “discriminação invertida” surge como uma oportunidade de mudar a jurisprudência norte-americana, fazendo derrubar centenas de leis que permitiam a discriminação às mulheres. Importante destacar, porém, que o caso em foco foi só um dos vários em que Ruth atuou. Sua estratégia foi de visar leis discriminatórias específicas, construindo vitórias sucessivas, em vez de pedir ao tribunal para acabar com toda a discriminação de gênero de uma só vez – algo que outros juristas já haviam tentado sucessivas vezes nos 100 anos anteriores, sempre fracassando.

Mas se o rio corre livre e perenemente, como dizia Heráclito, por outro lado as margens sempre tentam comprimir a dança das águas. No processo que serve de linha condutora do filme, o Estado adota a argumentação de que uma mudança jurisprudencial como a pleiteada por Ruth e seu cliente iria contra o que poderíamos chamar de “bons costumes”. Para o advogado do Estado, era natural as mulheres costumarem ser as que ficam em casa, enquanto os maridos trabalham fora, sustentam a família. Mais: o Estado chega a alegar que uma mudança desse tamanho poderia representar, na prática, a dissolução da “tradicional família norte-americana”.

Os ditos “cidadãos de bem”, sempre eles…

Acontece que o rio a tudo arrasta com sua força. Para Ruth, uma cena decisiva é quando vê sua filha Jane, de apenas 15 anos, demonstrar que a transformação de mentalidade para as gerações futuras já estava acontecendo. A lei teria de ser mudada, ou seria forçada, cedo ou tarde, a mudar para acompanhar o processo de transformação social.

Esse momento na vida da personagem reverbera já nas cenas finais, dentro do tribunal, quando a advogada realiza um discurso emocionado, mostrando aos juízes (todos homens) que o que ela queria no caso não era uma mudança radical, como alegava o Estado. A mudança radical já estava acontecendo, aos poucos, e o que ela queria era que a Justiça não continuasse a olhar apenas para o passado ou para o presente, sob o risco de acabar por perder de vista o futuro.

Rodolfo Kowalski
Enviado por Rodolfo Kowalski em 31/10/2019
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