Iluminação e Magia III - A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO

O renomado diretor americano Martin Scorsese deu um mergulho filosófico-religioso neste filme. Para tanto, encontrou no denso romance de Nikos Kazantzakis uma leitura heterodoxa da vida de Jesus (talvez, o melhor acesso para Scorsese acertar contas com a sua própria formação católica, além de problematizar o confronto da fé religiosa com um mundo cada vez mais marcado pelo ceticismo, pelo hedonismo, pelo consumismo e pela total ausência de paixão). Menos que exaltar a personagem histórica de Jesus Cristo, interessou a Scorsese defender a sobrevivência da paixão e do sagrado coração do homem. Por isso, o Jesus do cineasta Scorsese e do escritor Nikos Kazantzakis é contraditório, frágil e perturbado, pois, a fé de Cristo não é algo que alivia, mas algo que dói. Assim, de um prisma indócil:

“O homem tem pressa, Deus não. Eis por que os trabalhos do homem são incertos e disformes, enquanto que os de Deus perfeitos e seguros (...)

O ser humano não pode suportar a liberdade absoluta; tal liberdade o leva ao caos...” [Nikos Kazantzakis].

Ou, de um prisma dócil:

“Quando o coração ama e acredita, nada é quimera. Nada existe a não ser coragem, confiança e atos fecundos (...)

A água simples do cotidiano é transubstanciada; torna-se a água da vida eterna e renova o homem. Quando convertido emerge da água, o mundo lhe parece mudado. O mundo não mudou, continua sempre maravilhoso e horrível, injusto e carregado de beleza. Mas agora, depois do batismo, mudaram os olhos que vêem o mundo...” [N. Kazantzakis].

“Nikos Kazantzakis pediu a Deus dez anos adicionais de vida, dez anos a mais para completar sua obra – para dizer o que tinha de dizer e ‘esvaziar-se’. Queria que quando a morte viesse, encontrasse somente um monte de ossos. Dez anos seriam suficientes, ou assim ele imaginava” [Helen Kazantzakis].

Nikos Kazantzakis - nasceu na ilha grega de Creta em 1885 e faleceu em 1957, em Freiburg, na Alemanha - pode ser considerado o maior romancista grego do século XX. Por meio de seus famosos romances-poemas, como por exemplo: “Zorba, o Grego”; “Uma Odisséia Moderna”; “No Palácio do Rei Minos” e outros, o escritor grego empreendeu por toda sua vida a busca por uma resposta para o eterno enigma do silêncio de Deus.

Como bem procurou ressaltar José Paulo Paes (tradutor e crítico literário brasileiro), “Kazantzakis... é certamente um asceta moderno, porém num sentido especial, que evoca suas origens gregas. Os versículos que compõe sua ‘Ascese’ [outra notável obra de Kazantzakis] têm muitas fontes religiosas, entre as quais o budismo e o cristianismo, mas eles se recusam a propor uma doutrina, a apresentar ao leitor um deus redentor, a acenar com um além que desmereça, ainda que minimamente, o mundo em que vivemos.”

Com efeito, Kazantzakis percorreu continentes, freqüentou mosteiros e universidades, estudou com monges budistas, leu as obras do filósofo Nietzsche e do pai da psicanálise, Freud. Leu Marx... e produziu um elenco de livros apaixonados e cruéis sobre a grandeza e a vileza ou sobre o lado sombrio da alma humana; “Zorba, o Grego” é uma de suas obras literárias mais fiéis a tais princípios.

Devido ao teor sacro-profano de suas obras, Kazantzakis, quando morreu, foi excomungado da Igreja Ortodoxa Grega, e seu corpo não pôde ser sepultado no solo onde nasceu, isto é, na Grécia.

Depois de enfocarmos os tormentos de uma alma grega, passemos ao amargurado espírito imigrante do diretor Martin Scorsese (nasceu em New York, em 1942). Em seus filmes Scorsese exorciza nas telas os conflitos de classe, as rebarbas do sonho americano, a neurose metropolitana (desamparo perpétuo do homem só, diante dos demônios e também diante do silêncio de Deus). Daí a postura adotada, um tanto marginal, de Scorsese, em seus filmes, comumente considerados blasfemos por setores conservadores de todo mundo. A filmografia de Scorsese inclui filmes famosos, tais como: “Taxi Driver” (1976); “Touro Indomável” (1980); “O Rei da Comédia” (1983); “Depois de Horas” (1985); “A Cor do Dinheiro” (1986) e, dentre outros marcantes sucessos, o nostálgico e belíssimo “A Época da Inocência” (1983) – uma celebração do poder do amor em unir almas, mas também de destruí-las. Há que se ressaltar que o filme “A Última Tentação de Cristo” (1988) foi acolhido de forma violenta em vários países, sendo, desse modo, banido de cinemas e de cidades.

O roteiro d’ “A Última Tentação de Cristo” parafraseia, em linguagem abrasiva e colorida, os Quatro Evangelhos. A escritura de Kazantzakis reconstrói a vida de Jesus Cristo, apresentando-o como um homem comum, um carpinteiro que, aos poucos, vai desenvolvendo uma natureza transcendente, divina. É exemplar como qualquer um que, a exemplo de Scorsese, tenha em si a inquietação da existência e a paixão pela narrativa, se apaixona pelo romance e pelo admirável filme, pois, imaginar os personagens bíblicos como Kazantzakis os imagina e Scorsese os transpõe em imagens é, ao mesmo tempo, um desafio, um prazer, enfim, um autêntico exercício de ascese... Jesus aos 20 anos, repleto de desejos, não é capaz de consumá-los, porque bloqueado por forças que desconhece. Maria Madalena é a sua imensa paixão não resolvida. Maria não compreende as aflições do filho de Deus e as razões dele não poder ser um rapaz normal a exemplo de tantos outros.

E Pedro, será que era mesmo um político? Por que Matheus se refugiou em escrever compulsivamente? E quem realmente era Judas? Genialmente, Kazantzakis, na “Última Tentação de Cristo”, na confluência de várias tradições de pensamento e de religião, além de criar um expressivo jogo de descobrir a história de cada um pela incessante análise de uma outra história, expõe, com efeito, um doloroso exercício estético-filosófico como um jogo socrático (relembremos, aqui, da “maiêutica” - parto doloroso das idéias ou o método filosófico socrático de se atingir a verdade por meio do diálogo).

O elenco protagonista do filme conta com a participação de William Dafoe (Jesus), Bárbara Hershey (Maria Madalena), Harvey Keitel (Judas), David Bowie (Poncio Pilatos) dentre outros atores e atrizes famosos. As cenas do filme foram trabalhadas junto a arqueólogos e estudiosos da Bíblia, além de receberem um tratamento realista inspirado nas pinturas de Bosh e Rembrandt.

Em 1989, “A Última Tentação de Cristo” recebeu (injustamente!) somente a indicação para o Oscar de direção.

Notas do autor:

1. As citações tanto de Nikos quanto de Helen Kazantzakis foram, ambas, extraídas do livro “Testamento para el greco”. Tradução de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora ArteNova S.A., 1975.

2. Em 21 de janeiro de 2003, a mídia mundial destaca a premiação de Martin Scorsese, com um Globo de Ouro, pela direção do filme “As Gangues de Nova York”. Ao referido filme também foi concedido o Globo de Ouro na categoria Música Original pela trilha sonora “The Hands That Built América”, por U2.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Doutor em História e Filosofia da Educação pela UNICAMP.