Iluminação e Magia V - A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER

De estilo decisivamente europeu, isto é, de ritmo lento e cuidadoso, os filmes do diretor Philip Kaufman alcançaram repercussão que vão além do “cult”. Refiro-me, em especial, a “Os Eleitos”; “Henry e June” e “A Insustentável Leveza do Ser” (em 1987 foi indicado para o Oscar). Kaufman, amigo pessoal do escritor theco Milan Kundera — autor do grande romance de amor e erotismo “A Insustentável Leveza do Ser”; livro homônimo no qual o filme foi baseado —, em entrevista concedida à “Revista SET” (nº 12) afirma: “ _ quase nunca vou a Los Angeles. Não é o tipo de mundo, de ambiente, que me interessa: ardiloso, nervoso. Mesmo que você esteja morando lá sem a menor intenção de se deixar engolir por aquele mundo, o mundo puxa você.” Com efeito, tal declaração nos sugere que tanto no dia-a-dia quanto na ficção, Kaufman parece experienciar, sem fugas e sem temores, as exigências daquilo que constitui, em última instância, a nossa existência, isto é, suportar até o limite ou contemplar o abismo que separa o peso e a leveza da existência humana.

O elenco protagonista do filme forma um triângulo amoroso pouco convencional. De um lado, o amor de Tomas (Daniel Day-Lewis) — jovem e promissor médico — por Tereza (Juliete Binoche) — uma simples ex-garçonete. De outro: a libertinagem e o jogo hedonista entre as mulheres que seduzem Tomas, sobretudo Sabina (Lena Olin), uma exuberante pintora. Tomas é mulherengo, e Tereza sente ciúmes terríveis. Duas mulheres, Tereza e Sabina, que amam o mesmo homem: entendimentos, cumplicidades e distintas formas de amar. Um homem que ama duas mulheres de formas diferentes, mas com a mesma intensidade. Tereza representa a leveza, insustentável para Tomas, que dela se afasta, para, em seguida, ao se aperceber da incapacidade de fuga (do peso), dela novamente se aproxima, até o limite, na tentativa de não só compreendê-la, bem como a si próprio.

O enquadramento do filme é político. A data é 1968: “Primavera de Praga”; quando os tanques soviéticos sitiam a capital da ex-Theco-Eslováquia. O referido acontecimento histórico transforma a vida dos moradores da capital theca. Com efeito, o que resta nos domínios das vidas particulares dos cidadãos comuns é o impulso supremo da necessidade de liberdade.

Com profundas reflexões de caráter existencial, tanto o texto do romancista Kundera quanto a adaptação cinematográfica de Kaufman, ambos nos encantam e nos comovem com a beleza dos argumentos que perpassam os referidos textos (o escrito e o cinematográfico). Um dos argumentos refere-se a uma imagem de realização vital: trata-se do momento em que Tomas conhece Tereza... a imagem de uma mulher abandonada, adoecida, deitada num divã, qual uma criança. Junto à acelerada respiração febril de Tereza, Tomas encosta o rosto ao encontro do dela. Tomas imagina, então, que Tereza, ali, estava há muitos anos e que, naquele momento, morria. Tomas entende que não sobreviveria à morte dela. Assim, estende-se junto a ela, para morrer com ela. O que seria tudo isso senão o amor de Tomas por Tereza que assim se revelava? Seria amor?! Apaixonamo-nos, sempre, pela imagem primeira da pessoa amada?

Tomas é um mulherengo, sente-se inapto para o amor; nesse caso, começa, então, a representar para si próprio a comédia do amor?! Mas, o que pode valer uma vida sem amor, se o primeiro esboço da vida brota de um ato amoroso?

Tomas apaixonara-se... Percebe em Tereza um ser frágil, qual criança indefesa (a leveza) à deriva das impetuosas águas da existência (o peso). Tomas compreende, então, que as metáforas são perigosas, que não se brinca com as metáforas. Tomas compreende que O AMOR PODE NASCER DE UMA SIMPLES METÁFORA, de uma simples imagem.

No encerramento do filme, a dupla Kundera (romance)/Kaufman (filme) reserva-nos uma impactante surpresa; derradeira tentativa visando explicitar o binômio leveza/peso que movimenta as nossas existências?! Final surpreendente!

SÍLVIO MEDEIROS

Historiador, Mestre em Filosofia Política e Doutor em História e Filosofia da Educação pela UNICAMP.

primavera de 2005