OS SERTÕES (Euclides da Cunha)

Euclides da Cunha tornou “Os Sertões” clássico, pelo exaustivo trabalho de pesquisa, pelo frescor e ineditismo da sua presença física no calor da batalha(Canudos, sempre é bom lembrar), pela laboração “poética” de temas “duros”(geologia, etnologia, geografia e sociologia, entre outros); mas também – e muito – por torná-lo um tratado sobre si mesmo. Ao republicano incondicional, disciplinador incorruptível e civilizador nato, foi-se juntando aos poucos uma outra orientação, mais diversa e menos preconceituosa, depois de notar em suas observações da guerra, que a “civilização”(os soldados republicanos, no caso) estava barbarizando os “bárbaros”(a gente pobre de Canudos) que deveriam ser civilizados. Foram necessárias 280 páginas para que ele admitisse isso: “fora demasia de frase caracterizá-lo como “inimigo”(grifo meu)... esquisito eufemismo... o sertanejo defendia o lar invadido, nada mais”. Contudo, é preciso reconhecer aí um ineditismo de interpretação que acorre a Theodor Adorno, que décadas depois iria avançar o questionamento do quanto a civilização comete uma antropofagia violenta, a fim de combater os supostos bárbaros.

Mas Euclides também deixa-se corromper por uma inveja peculiar de Antônio Conselheiro. “Como aquele bronco gnóstico, feio, misógino e de interlocução monossilábica poderia agregar tantos fiéis, dominando toda a massa sertaneja com seu sermão ornamentado, hermético e megalomaníaco?” No seu racismo positivista, totalmente dominado por idéias liberais e cientificistas européias, ficava difícil para o autor entender(e aceitar!) o mundo caboclo e suas peculiaridades, ainda que para seus argumentos usasse com abundância o recorte científico e diversos suportes sócio-psiquiátricos para embasar suas digressões. Antônio Maciel(o Conselheiro), foi um líder messiânico e político, complexo e controverso. Mas não bastava centralizá-lo dentro dessa redoma de observações superficiais, e dizer que o curiboca, o jagunço, o sertanejo, o mamaluco, o cafuz, o mestiço; foi presa fácil do discurso avassalador de Conselheiro. Era vital diminui-lo, torná-lo louco, e encontrar nos seus seguidores um perfil predisposto ao atraso intelectual. Darwin (mal)aplicado ao sertão.

Recordemos o livro: “Os Sertões” é, basicamente, dividido em 3 estruturas justapostas: “A Terra”, à página 11, faz uma minuciosa descrição geológica da terra brasileira. Neste estudo, o autor sintetizou a formação do solo e o clima brasileiros, com citações de diversos pesquisadores, numa pesquisa fecunda que referenciou(e revolucionou) tudo o que seria discutido a partir de então.

Em “O Homem”, a partir da página 49, temos – e hoje é possível observar com nitidez – a descrição da composição do camponês matuto, sob uma ótica enviesada em racismos franqueados pelo ideário positivista, pelo qual rezava Euclides da Cunha. Este trecho contém os maiores erros de interpretação do autor, quando cita a mestiçagem cabocla como fator de atraso cultural, econômico e político. Neste mesmo capítulo é detalhada a formação do líder messiânico e sua horda de seguidores, que resultou na criação do Arraial de Belo Monte, no sertão agreste de Canudos. Num primeiro momento, a figura carismática de Conselheiro foi usada pelo clero e autoridades locais em reformas de igrejas e cemitérios ao redor do sertão. Só depois, quando a massa de admiradores cresceu e as fazendas vizinhas à nova cidade foram sendo esvaziadas pela fuga constante da mão-de-obras semi-escrava sertaneja, é que resolveram boicotá-lo.

Mas é em “A Luta”, que começa na página 134, que vemos a argúcia discursiva do autor ser vilipendiada pelos fatos. Há, então, um recuo em suas certezas, o que ele faz com elegância e sutileza. É possível entender então os erros de cálculo e avaliação das milícias oficiais mandadas para combater o arraial. As 3 tropas inicialmente enviadas para o sertão foram derrotadas, uma a uma, pelos próprios erros de logística, informação e preparo. Somente a quarta logrou êxito, mesmo assim após árdua batalha de meses, onde milhares de soldados pereceram destruindo uma cidade de mil habitantes.

Como “Os Sertões” foi publicado apenas quatro anos após o fim da campanha em Canudos, o autor pode confrontar informações, dados, documentos e pesquisa para a obra, que poderia ter sido a Bíblia definitiva sobre Canudos, não fosse o viés do preconceito e as pressuposições apressadas sobre o homem nordestino brasileiro. Seja como for, nesse livro é onde temos informações mais alentadas sobre Antônio Maciel e Belo Monte, sua formação e seu povo, numa utopia que foi possível – ainda que por pouco tempo – no solo agreste do interior da Bahia, na década final do século 19.

(Ed. Nova Cultural, ISBN 85-13-01090-1, Edição 2002, 370 pg)