"PARAÍSOS ARTIFICIAIS" Charles Baudelaire

Numa época como a atual, em que problemas relacionados ao uso abusivo de álcool e drogas atingem o âmbito da saúde pública e são manchetes nas páginas policiais dos jornais, ater-se a um texto poético sobre o ópio, o haxixe e o vinho pode, para muitos, parecer uma heresia. No entanto, estes ensaios de Baudelaire, ao buscar a compreensão dos estados de exaltação advindos do uso de drogas para além da mesmice classificatória que, via de regra, faz uma associação reducionista entre as propriedades químicas de determinada substância e seu efeito, proporciona uma apreensão do tema por um ângulo que vem sendo subestimado. Além, naturalmente, do prazer que a leitura de um texto do estilo de Baudelaire implica, o grande mérito desta obra é, portanto, justamente este olhar poético que recoloca, a meu ver, a questão dos efeitos provocados pela ingestão de substâncias psicoativas em seu devido lugar, a saber, o espírito humano, termo utilizado pelo autor.

Trata-se de um livro escrito no século XIX, fruto de minuciosas observações dos relatos e informações de usuários de então e, no que tange ao haxixe, da própria vivência do poeta que foi freqüentador do “Club dês Hashishins”, grupo de fumantes de haxixe que fazia experiências com escritas produzidas sob seu efeito.

Na primeira parte, dedicada ao haxixe, já nos deparamos com análises que desestabilizam a classificação segundo a qual, como sabemos, o haxixe é tido como alucinógeno. O autor pondera que os efeitos desta droga estão sujeitos a variações segundo o temperamento do indivíduo, e mais, estão sujeitos a variações no mesmo indivíduo, segundo as condições de uso. Embora reconheça “alguns fenômenos que se reproduzem com bastante regularidade, sobretudo nas pessoas de temperamento e educação análogos”(pág.19), afirma que as alucinações ocorrem com muito menos freqüência do que se imagina. “O homem não escapará à fatalidade de seu temperamento físico e moral, o haxixe será, para as impressões e os pensamentos familiares do homem, um espelho que aumenta, mas um simples espelho.”(pág.23) “O haxixe não revela ao indivíduo nada além do próprio indivíduo”.(pág.75) Considero estas frases bastante elucidativas da inversão do ângulo a que me referi acima.Aqui encontramos a primazia do sujeito como o produtor do efeito da substância, e não a primazia das propriedades químicas desta.

A segunda parte,“O Comedor de Ópio”, é praticamente uma tradução comentada das “Confissões de um Comedor de Ópio”, autobiografia do inglês Thomas De Quincey (1785 – 1859), que exerce influência em Charles Baudelaire com este corajoso testemunho de um dependente químico cuja escrita não se intimida diante do moralismo britânico do início do século XIX, tampouco se abstém de alertar para o grande número de “comedores de ópio” presente nas mais diversas classes sociais inglesas. Embora a finalidade do uso da droga e sua relação com a o caráter do usuário continue permeando o texto, nestas páginas dedicadas ao ópio o que mais chama a atenção, contudo, é a instalação da dependência e, agora sim, a interferência da dependência no caráter do usuário. Baudelaire acompanha com pesar a evolução do vício de De Quincey que, de consumidor semanal da substância, mas também estudioso de Kant, Fichte, Schelling, passa aos poucos a ter sua vida regida pelo consumo da droga. Assim, várias passagens do texto são dedicadas à análise da quantidade de ópio ingerida em determinado dia, semana ou mês, apontando já para a luta de De Quincey contra a dependência que culminou em prejuízo à sua dedicação à filosofia e matemática, pois, em função da impossibilidade de disciplina que tais estudos exigiam, acabou negligenciando-os.

Finalmente, no apêndice, temos o encantador poema em prosa “Do Vinho e do Haxixe” que foi, na verdade, o primeiro esboço sobre o assunto que mais tarde daria origem ao livro ora comentado. Não resta dúvida aqui de que Baudelaire era um amante do vinho e o poema a ele dedicado é quase uma apologia. Para demonstrar seu amor, recorre a Hoffman e suas associações que estabelecem relações entre determinado vinho e determinado gênero musical. Compara o vinho ao ser humano e lhe dá a voz para que possamos saber quão prazeroso é para ele habitar o peito do homem que o liberta da clausura em barris ou garrafas! Para demonstrar seu amor ao vinho e aos que compartilham deste amor, Baudelaire inocenta a embriaguez e eleva o vinho a uma necessidade básica ao intelecto da humanidade: sem o vinho esta cairia num vazio mais terrível que os excessos pelos quais o responsabilizamos. Ironiza aqueles que bebem somente água e leite e conclui: “há bêbados perversos; são pessoas naturalmente perversas.” (pág. 228)

Resenha do livro “Paraísos Artificiais – O Ópio e Poema do Haxixe”, Charles Baudelaire, L&PM Editores, 1998.

Rocio Novaes
Enviado por Rocio Novaes em 13/04/2005
Reeditado em 05/06/2006
Código do texto: T11199