DOM CASMURRO (Machado de Assis)

Agora, aos 40 anos, retornar pela terceira vez a essa tragédia de amor tupiniquim, tomou em mim ares de câmera grande-angular, pois permite fazer uma longa varredura pela complexa cabeça sutilmente suicida de nosso anti-herói Bentinho. Seu relato parece um travelling cinematográfico, querendo ressaltar as imagens centrais no campo de abertura que a lente nos permite captar.

Bentinho e Capitu, salvo engano contábil meu, formam o dístico amoroso mais famoso e discutido na literatura brasileira, talvez lusófona. Dístico? Sim! Pois aqui o leitor, feito cúmplice do personagem principal, ainda assim não pode participar das extremidades de suas observações, já que a Capitu(esposa) e a Escobar(melhor amigo), possíveis traidores de sua confiança, não foi dado o direito à defesa, e, portanto, o benefício da dúvida fica perpétuo. Em tempos politicamente corretos, não é certo julgar com o depoimento de um lado só. Consideremos então como sendo uma história de amor entre um casal burguês ocidental católico: Bentinho e Capitu.

Pois bem, ambos foram vizinhos desde a infância, e desenvolveram uma profunda amizade que entrou pelos idos da adolescência. Dos folguedos infantis foram lançados para a idade juvenil, mas Bentinho tinha sido prometido à vida eclesiástica por sua mãe, antes do nascimento. Logo, ciscunstanciado pelo destino e atrelado ao sentimento que o ligava a Capitu, viu-se na obrigatoriedade de ir para o seminário. Nos estudos de ordenança, porém, conhece aquele que seria uma curva, uma pedra de esquina em sua vida: Escobar. E ambos, por meios distintos, não concluem o ensino eclesiástico e voltam à vida secular. Bentinho torna-se advogado e casa-se com seu amor adolescente; Escobar torna-se comerciante bem-sucedido e casa-se com Sancha, amiga de Capitu. A mão do destino, contudo, pesa violentamente sobre todos quando Escobar morre anos depois e sua viúva vai morar no Paraná. O casal vê-se a sós com suas rotinas necessárias, suas vidas pequeno-burguesas, e tratam de cuidar do filho Ezequiel, que está crescendo. E quanto mais cresce, mais vai ganhando em fisionomia as formas do amigo já falecido do pai.

Corroído pela dor da dúvida, esse então torna-se dono de uma casmurrice fria, impertinente e orgulhosa; pondo enfim um epílogo no seu casamento e ao andamento solar de sua vida. Capitu e o filho partem para a Europa; e lá ela morre algum tempo depois.

A partir daí, Bento, agora um autêntico Dom Casmurro irá desenvolver um monólogo de dúvidas interiores nunca esclarecidas, tampouco exauridas. Antes, com esse argumento suicida, criará para si um jardim marmóreo no qual petrificará sua existência. À luz de uma psicologia trêmula, Bentinho foi pintado por Machado de Assis com cores nada modestas, numa profusão de anomalias barrocas disfarçadas sob uma vastidão verborrágica(não por acaso foi seminarista e formou-se advogado).

Hoje é fácil perceber nele(o personagem), uma feminilidade latente, quase bissexual, mas acomodada a uma época que não era essa de agora – e olha que ainda respiramos ares triunfalistas bilaterais, que dirá aquela época? Também é possível notar sua facilidade em acomodar-se às situações, e ele assim se reconhecesse. Dom Casmurro era, em suma, um indivíduo que hoje citaríamos como “aquele que está sempre em cima do muro”, sempre polido, cordato, educado, acinzentado. Até o seu amor foi primeiro percebido por terceiros para depois por-se diante da vida dele. Talvez nem fosse amor(ou algo sinônimo), mas tornou-se, a partir da observação informal de José Dias, o agregado que era um office-man da casa. E até nessa situação, vemos o nosso herói romanesco aonde? Escondido, atrás da porta. De onde, aliás, ele nunca saiu.

*(Coleção “Ler é Aprender” Jornal O Estado De São Paulo – Click Editora – 304 p.)