"A mulher que escreveu a Bíblia"... e um homem que não conseguiu contar a história

Ainda no início da leitura de "A mulher que escreveu a Bíblia", de Moacyr Scliar (Ed: Companhia das Letras) me dei conta de que, mal sacudira a areia de "Vozes do Deserto", de Nélida Piñon, e estava no meio de mais um livro passado na época das mil e uma noites, com seus desertos, sultões, esposas e concubinas.

É impressionante como o cenário oriental anda abundante na literatura! Em uma rápida vasculhada na memória, posso acrescentar aos dois já mencionados: a reedição do original que deu origem a série, o próprio "As Mil e Uma Noites", relançado pela Editora Globo; e o delicioso "Alqueluz", de Luis Antônio Aguiar (Editora Objetiva). Por que será que esse "inconsciente coletivo literário" levou escritores e editores de volta a um tempo tão antigo e distante? Ainda não cheguei a nenhuma conclusão digna de nota e fico grata a quem quiser pensar comigo.

Enquanto refletimos, volto - com certa relutância, confesso - para contar o resultado da minha leitura de "A mulher que escreveu a Bíblia". Este foi o primeiro livro que li do autor - que me havia sido muitíssimo bem recomendado por alguns amigos e pelos cadernos literários em geral - e, como gostei do resumo da história, estava cheia de boa vontade. Mas não foi desta vez que Scliar me conquistou.

O argumento principal é interessante: nos tempos do rei Salomão, uma mulher que carrega o ônus de um rosto muito, muito feio e o bônus de uma inteligência fora da média, vive a aventura de se tornar uma das centenas de esposas do próprio Salomão e, graças a sua inteligência e a alguns empurrões do destino, de ser convocada para redigir o que poderia ter sido a primeira versão da Bíblia. Um dos bons momentos do livro é a primeira cena em que a mulher aparece, aos dezoito anos, olhando-se no espelho pela primeira vez e, só aí, descobrindo que era absolutamente... feia.

Mas o primeiro problema do livro aparece já na estrutura da obra. O autor optou por começar nos apresentando um professor de História que por razões enroladas e tediosas decide se tornar terapeuta de vidas passadas. O caso mal resolvido (com duplo sentido) com uma das pacientes acaba por lhe deixar o legado da história de uma das vidas passadas da tal paciente, escrita de próprio punho. E só aí começa o livro propriamente dito.

O tal professor de história nunca volta para nos dizer exatamente a que veio e seguimos até o final do livro conhecendo a história da moça feia narrada por ela mesma, em primeira pessoa. E é aí que entra o segundo problema e o autor me perde de vez. É muito difícil convencer a qualquer um (ou, no mínimo, a qualquer uma) que aquela narração teria sido feita por uma mulher - por mais que fosse uma mulher dos tempos atuais narrando uma encarnação anterior. O vocabulário, o humor, a crítica, tudo é obviamente masculino. Aí não convence, aí fica difícil mergulhar nas situações criadas - e que são muitas vezes até bastante inteligentes-, aí o livro realmente não funciona.

E foi no momento em que percebi isso, que me lembrei com saudades do som das "Vozes do Deserto" de Nélida. Não só pela beleza do feminino que ela cria, mas principalmente por seu respeito e seu talento ao lidar com a língua portuguesa. Nesse ponto, Scliar ficou devendo. Fiquei com a sensação de que faltou, no mínimo, um bom copydesk final.

Ah! Para minha maior confusão, descobri que "A mulher que escreveu a Bíblia" ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria Romance, em 2000. Essa eu não entendi mesmo ...

Bem, vou recuperar o fôlego mergulhando em outras praias e volto a Moacyr Scliar daqui a algum tempo...me disseram que "Saturno nos trópicos é bom". Alguém recomenda?

Ana Rodrigues
Enviado por Ana Rodrigues em 27/04/2006
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