Documento: A interpretação da Bíblia na Igreja

PONTIFÍCIA COMISSÃO BIBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. 7.ed. São Paulo: Paulinas, 2006

SÍNTESE

O documento “A interpretação da Bíblia na Igreja” foi aprovado pelo Papa João Paulo II, no dia 25 de abril de 1993, apresentado pela Pontifícia Comissão Bíblica, por ocasião do centenário da Encíclica de Leão XIII “Providentíssimus Deus” e do cinqüentenário da “Divino affante Spiritu” de Pio XII. O documento é fruto da importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões. A problemática atual do documento está relacionada com a discussão que o método histórico-crítico (que é praticado correntemente em exegese, inclusive na exegese católica), encontra. Este método trata da evolução histórica dos textos das tradições através do tempo (diacronia), com o cuidado de reconstruir o passado; traz novos argumentos aos adversários da exegese científica. O objetivo do documento é indicar caminhos para uma interpretação da bíblia mais fiel em seu caráter ao mesmo tempo humano e divino deixando de lado a teologia da inspiração e tomando como base o exame dos métodos suscetíveis que contribuem na valorização das riquezas contidas nos textos bíblicos. O documento está dividido em quatro capítulos, a saber: 1) Métodos e abordagens para a interpretação; 2) Questões de hermenêutica; 3) Dimensões características da interpretação católica; 4) Interpretação da Bíblia na vida da Igreja.

O primeiro capítulo intitulado “Métodos e abordagens para a interpretação”, está subdividido em seis partes: a) Método histórico-crítico; b) Novos métodos de análise literária; c) Abordagens baseadas na tradição; d) Abordagens através das ciências humanas; e) Abordagens contextuais; f) Leitura fundamentalista. A Pontifícia Comissão Bíblica apresenta o método histórico-crítico, bem como a história do método; a descrição e a avaliação.

Na sua exposição, o método histórico-crítico, apresenta uma critica textual, que permite em seguida, que o texto seja submetido a uma análise lingüística (morfologia e sintaxe) e semântica. A critica literária tem função de discernir o início e o fim das unidades textuais, grandes e pequenas e verificar a coerência interna dos textos. A avaliação deste método histórico-crítico leva ao fator de que não implica em si nenhum a priori. Ele obteve como resultado, a abertura de um novo acesso à Bíblia. Seu uso manifesta limites, pois se restringe à procura do sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas de sua produção. Contribui para a produção de obras de exegese e de teologia bíblica de grande valor. Seu objetivo é colocar em evidência de maneira diacrônica, o sentido expresso pólos autores e redatores.

Os novos métodos de análise literária são métodos desenvolvidos recentemente, diante dos progressos através dos estudos lingüísticos e literários. Neste método, destaca-se: 1) a análise retórica; 2) a análise narrativa; 3) a análise semiótica. A análise retórica: não é em si um método novo, mas é nova a sua utilização sistemática para a interpretação da Bíblia e o surgimento de uma nova retórica. A análise narrativa: está ligada a um novo paradigma diante da maneira de apreciar o alcance dos textos. Possui um aspecto informativo do relato, ou seja, insiste-se na necessidade de contar a salvação e um aspecto de desempenho, que é, de contar em vista a salvação. Ela corresponde à natureza narrativa de um grande numero de textos bíblicos e tem o objetivo de esforçar-se em corresponder à sua especificidade. A análise semiótica: está entre os métodos sincrônicos. Este método, chamado “estruturalismo”, pode propor como descendente do lingüista suíço Ferdinand de Saussure que no início do século XX elaborou a teoria segundo a qual toda língua é um sistema de relações que obedece a regras determinadas. A semiótica pousa sobre três princípios: de imanência, de estrutura do sentido e da gramática do texto. Ela pode ser utilizada para o estudo da Bíblia quando é separada de certos pressupostos desenvolvidos na Filosofia Estruturalista.

As Abordagens baseadas na Tradição, esta é dividida em: 1) Abordagem canônica; 2) Abordagem com recurso às tradições judaicas de interpretação; 3) Abordagem através da história dos efeitos do texto. A abordagem canônica: nasceu nos EUA há 20 anos. Tem como tarefa teológica de interpretação que parte do quadro específico da fé: a Bíblia em seu conjunto. Interpreta os textos bíblicos à luz do Cânon das Escrituras, tem como objetivo atualizar a Escritura. Não substitui o método histórico-crítico nas complementa-o. A abordagem com recurso às tradições judaicas de interpretação: esta, permite, dentre outras coisas, conhecer melhor a Bíblia judaica dos setenta e a literatura judaica extra-canônica, chamada apócrifa, abundante e diversificada, é uma fonte importante para a interpretação do Novo Testamento. A abordagem através da história dos efeitos do texto: apóia-se sobre dois princípios: um texto torna-se uma obra literária somente se ele encontra leitores que lhe dão vida apropriando-se dele; e essa apropriação do texto, que pode se efetuar de maneira individual ou comunitária e toma forma em diferentes domínios (literário, artístico, teológico, ascético e místico).

As Abordagens através das ciências humanas visam contribuir para uma compreensão melhor de certos aspectos dos textos, em particular a sociologia, a antropologia e a psicologia. A abordagem sociológica: Busca caracterizar o âmbito social, o qual foi escrito os textos da Bíblia. A abordagem através da antropologia cultural: está ligada à abordagem sociológica. A distinção desta abordagem está no nível da sensibilidade, do método e dos aspectos da realidade que retém atenção. Atuam no âmbito da linguagem, da arte da religião, nos vestuários, ornamentos, festas, danças, mitos lendas e tudo o que concerne à etnografia. As abordagens psicológicas e psicanalíticas: estas contribuem em um melhor entendimento dos textos bíblicos enquanto experiências de vida e regras de comportamento e levam em conta que a religião está em constante situação de conflito com o inconsciente. Elas abrem o caminho para uma compreensão pluridimencional da Escritura e contribuem também no decifrar a linguagem humana da revelação, além de darem nova compreensão do símbolo.

Sobre as Abordagens contextuais, é relevante destacar que a interpretação que os leitores fazem de um texto bíblico, de certa forma privilegiam certos aspectos e ignoram outros. Os movimentos de libertação e o feminismo retém particularmente a atenção. Abordagem da libertação: não se contenta somente com o texto bíblico, mas procura fazer uma leitura a partir da situação vivida pelo povo. Seus princípios apresentam um Deus que está presente na história e do lado dos pobres, portanto, a exegese deve buscar entrar em combate pela libertação dos oprimidos. Abordagem feminista: busca a libertação da mulher e a conquista de direitos iguais aos dos homens. Possui dois critérios de investigação: um feminista e um sociológico. A Leitura fundamentalista, parte do pressuposto de que a Bíblia deve ser lida e interpretada em todos os detalhes, por ser palavra inspirada pode Deus. Opõe-se ao método histórico-crítico e científico. Em sua adesão ao princípio da “Sola Scriptura”, o fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia da tradição guiada pelo Espírito Santo. É uma abordagem perigosa porque atrai as pessoas para procurar respostas bíblicas para seus problemas de vida.

O segundo capítulo do documento, intitulado como “Questões de hermenêutica”, apresenta dois pontos: a) Hermenêuticas filosóficas; b) Sentido da Escritura inspirada. Hermenêuticas filosóficas: destaca: 1) Perspectivas modernas; 2) Utilidade para a exegese. Perspectivas modernas: Bultmann, diante do que fale ao homem contemporâneo sobre a Escritura, insistiu na pré-compreensão necessária a toda compreensão e elaborou a teoria da interpretação existencial dos escritos do Novo Testamento. Como ele, Gadamer também sublinha a distância histórica entre o texto e seu intérprete, retoma e desenvolve o círculo hermenêutico. Ricoeur retém-se primeiramente o relevo dado à função de distanciação como condição necessária a uma justa apropriação do texto. Primeiro sublinha uma distância entre o texto e seu autor, depois, uma outra distância entre o texto e seus leitores sucessivos. Utilidade para a exegese: esta é chamada a se completar por uma hermenêutica, no sentido recente do termo. É necessária uma interpretação atual da Bíblia na sua história, e nisso se faz uma reação sadia ao positivismo histórico e à tentação de aplicar ao estudo da Bíblia os critérios de objetividade utilizados nas ciências naturais. O Sentido da Escritura inspirada: A exegese antiga atribuía a todo o texto da Escritura sentidos de vários níveis, fazendo uma distinção mais corrente entre sentido literal e espiritual. Com isto, a exegese histórico-crítica, adota a tese da unicidade de sentidos, buscando uma leitura com único significado e se esforça em definir o sentido preciso de um texto bíblico nas circunstâncias de sua produção. Esta tese entra em conflito com as conclusões das ciências da linguagem e com as hermenêuticas filosóficas, que afirmam a polissemia dos textos escritos. Sentido literal: diferente de sentido “literalista” busca compreender o texto segundo as convenções literárias da época. É aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos inspirados. O sentido de um texto não pode ter caráter subjetivo, deve-se rejeitar a interpretação heterogênea ao sentido expresso pólos autores humanos. Sentido espiritual: se deu com o acontecimento pascal de Jesus Cristo. Este sentido ilumina de maneira nova, os textos antigos e os fazem mudar de sentido. Esse sentido espiritual pode ser entendido segundo a fé cristã, sob influencia do Espírito Santo. Este também existe efetivamente e nele, no Novo Testamento, se reconhece a realização das Escrituras. Não pode ser confundido com interpretações subjetivas ditadas pela imaginação ou especulação intelectual. Sentido pleno: esta denominação suscita discussões. É o sentido mais profundo do texto, desejado por Deus não expresso pelo autor. É uma outra maneira de designar o sentido espiritual de um texto bíblico.

O terceiro capítulo é intitulado como “Dimensões características da interpretação católica”. Essa exegese se situa conscientemente na tradição viva da Igreja e sua primeira preocupação é a fidelidade à revelação atestada pela Bíblia. Ela aborda os escritos bíblicos com uma pré-compreensão que une estreitamente a cultura moderna científica, mas deve-se levar em conta que esta pré-compreensão comporta, entretanto, seus perigos, principalmente quando se atribui a um texto, um sentido não correto. A interpretação na Tradição bíblica: Releituras: as releituras são feitas a partir de um texto anterior ao que se escreve, para que sejam desenvolvidos novos aspectos de sentido; Relações entre o Novo Testamento e o Antigo Testamento: é formado por alusões do Antigo Testamento e por citações explícitas. Os autores do Novo Testamento reconhecem no AT, uma inspiração divina. Foi à luz dos acontecimentos da Páscoa que pôde ser feita uma releitura do AT. Esta relação não deixa de ser complexa; Algumas conclusões: a Bíblia é efetivamente uma interpretação. É expressão válida das comunidades da Antiga Aliança e do tempo apostólico. A Sagrada Escritura está em diálogo com as comunidades dos fiéis, ela saiu de suas tradições de fé, ela dialoga com a geração presente.

A interpretação na Tradição da Igreja destaca: Formação do Cânon: é a conclusão de um longo processo. Ao discernir o Cânon das Escrituras, a Igreja discernia e definia a sua identidade, século após século. Seus escritos têm caráter salvífico e teológico diferente de outros textos antigos; Exegese Patrística: os Padres da Igreja que contribuíram no processo da formação do Cânon, tiveram também um papel fundador em relação à Tradição viva que sem cessar acompanha e guia a leitura e a interpretação que a Igreja faz das escrituras. Consideram a Bíblia como sendo um livro de Deus e admitem que seja feita sua interpretação. Interessam-se pela tradução hebraica e adotam o método alegórico, que ultrapassa o fenômeno de uma adaptação ao método alegórico dos autores pagãos; Papel dos diversos membros da Igreja na interpretação: todos os membros da Igreja têm um papel na interpretação das Escrituras. São dotados de carisma no que se refere à interpretação da Bíblia, transmitindo a Palavra de Deus e aplicando a verdade eterna do Evangelho às circunstâncias concretas da vida.

A tarefa do exegeta define algumas orientações: Orientações principais: o exegeta deve sublinhar o caráter histórico da Revelação, interpretar a Palavra de Deus, esclarecer o sentido do texto bíblico como Palavra atual de Deus, explicar o alcance cristológico e explicar a relação entre Bíblia e Igreja; Pesquisa: É necessária a formação de pessoas dentro da pesquisa em diferentes setores da ciência exegética. Mas, percebe-se uma ciência, que expõe a Igreja a graves inconvenientes, em relação da vida com a fé; Ensinamento: é necessário um ensinamento da exegese feito por homens e mulheres, buscar uma dimensão intelectual séria. Mostrar aos estudantes o valor literário, histórico, social e teológico da escritura. Deve mostrar as raízes históricas dos escritos bíblicos, o aspecto deles enquanto Palavra do Pai aos filhos e o papel indispensável que existe no ministério pastoral; Publicações: nos dias atuais, a publicação da exegese passa por meios do rádio, da tv, das técnicas eletrônicas, além dos textos impressos. As publicações de nível cientifico são o instrumento principal de diálogo, de discussão e de cooperação entre os pesquisadores. O documento cita também as relações com as outras disciplinas teológicas: Teologia e pré-compreensão dos textos bíblicos: na exegese católica, essa pré-compreensão é baseada nas certezas da fé: a Bíblia é um texto inspirado por Deus e confiado à Igreja para suscitar a fé e guiar a vida cristã; Exegese e teologia dogmática: o trabalho do exegeta é fundamental nos estudos teológicos, porque é necessário dar uma atenção particular ao conteúdo religioso dos escritos bíblicos. Os exegetas ajudam os dogmáticos a evitar o dualismo e o fundamentalismo; Exegese e teologia moral: os mandamentos, as interdições, as exortações, as prescrições jurídicas, as invectivas proféticas e os conselhos sábios são condutas que devem ser mantidas. Com isso, os exegetas preparam o trabalho dos moralistas. Os moralistas são convocados a apresentar aos exegetas questões importantes que estimularão suas pesquisas; Pontos de vista diferentes e interação necessária: os pontos de vista são efetivamente diferentes. É tarefa da exegese, discernir o sentido do texto bíblico em seu contexto, depois evidenciar o sentido teológico dos textos. Desse modo, é proporcionada uma relação de continuidade, feita entre a exegese e a reflexão teológica seguinte.

No quarto e último capítulo, é trabalhada a questão da interpretação da Bíblia na vida da Igreja. Certa do dinamismo do conhecimento vivo da Igreja, ela ilumina problemas atuais admite importâncias humanitárias. Para impedir irregularidades, a atualização parte de uma justa interpretação do texto, feita sob a orientação da Tradição eclesiástica. O que consente a fertilidade bíblica no transcurso do tempo é também um empenho de inculturação. Incide em traduzir o texto subjugando os limites e as barreiras culturais, interpretar, conforme a época e realidade local e formar também, uma cultura cristã. A liturgia é o lugar excepcional para a relação e atualização dos textos bíblicos, a liturgia da Palavra é o meio categórico na celebração de todos os sacramentos da Igreja. É destacado também no documento, o cuidado de se praticar uma leitura satisfatória individual ou até mesmo comunitária, como a lectio divina.

No ministério pastoral, o emprego da Bíblia abrange três situações: catequese, pregação e apostolado bíblico. Na catequese, as leituras devem gerar um encontro com Cristo; a pregação teve tirar dos textos antigos alimento espiritual adaptado às necessidades atuais da comunidade cristã e o apostolado bíblico tem como objetivo fazer conhecer a Bíblia como Palavra de Deus e fonte de vida. O ímpeto ecumênico de unidade está arraigado na Escritura. Há dificuldade quanto às diferentes interpretações, organização dos livros canônicos e jurisdições, o que muitas vezes revela experiências complementares e enriquecedoras. A adoção de métodos hermenêuticos análogos é causa de convergência de interpretações, o que promove com um testemunho autêntico e vivo à realização da unidade na diversidade.