RESENHA DO LIVRO: “A PERSONAGEM DE FICÇÃO”

RESENHA DO LIVRO: “A PERSONAGEM DE FICÇÃO”

Pretende-se por meio dessa resenha apontar os principais pontos abordados por Antônio Cândido, Anatol Rosenfeld e Décio de Almeida Prado, na obra: A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

Anatol Rosenfeld aborda, no primeiro capítulo, a temática “Literatura e personagem”. Inicialmente conceitua literatura na acepção lata, como qualquer tipo de obra “que parece fixada por meio das letras” (ROSENFELD, 1998, p. 11), como reportagens, livros didáticos, por exemplo. Contudo, dentro deste vasto campo literário, Rosenfeld designa a literatura ficcional como as belas letras, cuja estética se diferencia das outras literaturas, por apresentar um caráter fictício ou mimético da realidade empírica. Classifica uma obra como literária, a partir de três características: a primeira diz respeito ao problema ontológico, ou seja, toda obra, literária ou não, apresenta um contexto inserido em um determinado tempo histórico, porém, para o autor, uma das diferenças entre o texto ficcional e o texto não ficcional, reside no fato de o texto ficcional projetar contextos objecturais, por meio dos quais os seres e mundos puramente intencionais tornam-se “reais”. Na obra ficcional, o raio intencional detém-se nestes seres puramente intencionais, referindo-se ao mundo extra literário somente de modo indireto. Rosenfeld refere-se também, ao problema lógico como fator de destaque, no que se refere ao diferenciar a obra literária da obra não literária. Assim, enquanto a obra científica constitui objectualidades puramente intencionais, para ser compreendida, a obra literária não busca a objetividade, ou seja, sua realidade não é empírica, mas realidade provável, um mundo imaginário vivido por personagens fictícias. Por fim, como terceira característica, Rosenfeld trata do problema epistemológico (a personagem). Para o autor, a personagem é a principal responsável pela ficcionalidade da obra, porque é ela que, com mais nitidez torna patente e constitui a ficção. Ainda por meio dessas personagens, a camada imaginária se adensa e se cristaliza.

No que tange à diferença entre as pessoas reais e as personagens fictícias, Rosenfeld diferencia como sendo as pessoas reais totalmente determinadas, apresentando-se como unidades concretas, integradas de uma infinidade de predicados, dos quais somente alguns podem ser colhidos e restritos por meio de operações cognoscitivas especiais, características que se referem em particular a seres humanos. Enquanto a personagem literária é caracterizada, por fazer parte de um mundo mais fragmentário do que o mundo empírico, é um ser esquematicamente configurado, tanto no sentido físico como psíquico.

A estética é outro ponto importante apresentado por Rosenfeld, não só para o reconhecimento da obra, quanto para a valorização da mesma. Assim, cada momento descrito é de suma importância para a composição dessa estética que, se pode dizer, é primordial numa obra ficcional. Integrado a essa singular estática, a personagem apresenta papel fundamental no que se refere à composição da obra, porque representa seres humanos de contornos definidos e definitivos, em amplas medidas transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar. Assim como os seres humanos, as personagens encontram-se integradas num grande tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político social e tomam determinadas atitudes em face desses valores. Desse modo, o leitor, ao contemplar uma obra literária, se vê diante de uma realidade que é fictícia, mas que, no entanto, trata mimeticamente da realidade real do momento em que foi escrita a obra.

No segundo capítulo, Antônio Cândido trata especificamente da Personagem do romance. Personagens que segundo ele, são as entidades fictícias que vivem os fatos que compõe o enredo, intimamente ligadas, exprimem os intuitos do romance, bem como a visão da vida que decorre os significados e valores que o animam, compondo, assim, a personagem, o que de mais vivo existe no romance. Portanto, para Cândido, para que haja boa leitura é importante a formação do pacto ficcional entre obra e leitor. Porém, Cândido critica essa total ligação do leitor à obra, ao ponto de ponderar os mais graves defeitos de enredo e de idéia aos grandes criadores de personagens, levando o leitor, ao erro de pensar que o essencial do romance é a personagem, como sendo ela capaz de existir separada das outras realidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Mas a personagem é, sim, segundo o autor, o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, mas que só adquire pleno significado no contexto em que está inserida.

Assim, como o é para Anatol Rosenfeld, o personagem é, para Antônio Cândido, um ser fictício, elemento no qual o romance se firma e passa a existir como verdade existencial.

Pode-se dizer, portanto, que o romance tem suas bases firmadas num certo tipo de relação/afinidade entre o ser real e o ser fictício, manifestado por meio da personagem, que é a concretização deste. Enquanto na vida, estabelece-se uma interpretação de cada pessoa, objetivando conferir certa unidade à sua diversificação essencial para a sucessão dos seus modos de ser, no romance, o escritor estabelece a lógica da personagem. Uma personagem que segundo Cândido, mesmo tendo sido coerentemente fixada para sempre, pelo autor, sofre variadas interpretações por parte dos leitores, porque ela é, na verdade, formada a partir de elementos que o romancista utiliza para descrevê-la, de maneira que ela passa a dar a impressão de vida, permitindo, assim, ao leitor dar-lhe variadas interpretações.

No romance moderno, porém, o nível de complexidade da personagem fictícia aumenta, diminuindo, desse modo, a idéia de um esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista. Essa complexidade da personagem fictícia do romance moderno deve-se, principalmente à revolução decorrida no romance a partir do século XVIII e estendida até ao século XX, em que a estrutura da obra passa de enredo complexo e personagem simples, para enredo simples e personagem complexa. Uma mudança que para Cândido, deve-se ao esforço de aproximar a personagem da pessoa real. E exemplifica com a obra “Ulisses”, de James Joyce, como o ápice do senso de simplificação dos incidentes da narrativa e à unidade relativa de ação do romance moderno.

Assim, pois, temos que a fragmentação da personagem, no romance, serve de base para o leitor aproximar a personagem da pessoa real. Uma técnica que serviu no século XVIII, para a técnica de caracterização da personagem em personagens de costumes e personagens de natureza. Sendo, porém, a personagem de costume mais divertida, e por isso mais bem compreendida do que a personagem de natureza, que exige do leitor um aprofundar nas emoções humanas. Mais tarde, porém, Forster nomeia essas personagens em planas e esféricas.

Para Forster, citado por Cândido, o Homo fictus e o Homo sapies vivem segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, porém, numa proporção e avaliação diferenciadas. Ainda para Cândido é importante que a personagem tenha características que a identifique com um ser vivo, ou seja, que vivas situações idênticas às reais e cotidianas vividas pelo seres humanos. Para tanto, é necessário que haja vínculos entre o autor e a personagem, para que dessa forma, o autor possa dar “vida” a esse ser fictício. Contudo, essas características dependem em parte da concepção que preside o romance e da intencionalidade do romancista.

E para finalizar a resenha, discutem-se os apontamentos de Décio de Almeida Prado a respeito da personagem no teatro. Para ele a diferença entre romance e teatro é obvia, e, portanto a diferença estrutural entre as personagens do teatro e as personagens do romance são bastante consideráveis. Enquanto no romance as personagens são mediadas pela voz narrativa, no teatro é o próprio ator quem fala diretamente ao público e com o público.

Outro fator discutido por Prado é o fato de tanto o romance quanto o teatro falarem do homem, embora o romance fale por meio do narrador e o teatro por meio do próprio homem que, ao vivo encena, como se fosse real, o tema proposto. Assim, no romance o interior da personagem é conhecido por meio do fluxo de consciência, enquanto no teatro esse conhecimento torna-se possível por meio do diálogo entre a personagem e o confidente, que segundo Prado, é uma extensão da própria personagem que está expondo seus sentimentos. Além dessas características já apresentadas, o tempo é outro fator referente na diferenciação entre o romance e o teatro, pois que, a duração de uma peça varia entre duas e três horas, enquanto que no romance, o tempo acompanha os acontecimentos do enredo.

Para Prado, então, a obra literária é uma extensão do escritor, ou seja, ao escrever uma obra, o autor está, na verdade, transfigurando para ela o que de mais íntimo e pessoal existe dentro dele.