Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação

LIBÂNIO, J. B. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo. Siquem, Paulinas, 2003.

RESENHA

Na introdução, Libânio afirma que os cristãos sempre foram caracterizados pela busca da sua fé mais madura e fundamentada e que antes de qualquer coisa, é uma busca pelo Evangelho e pela pessoa de Cristo, para isso, a Teologia Fundamental prestará um excelente serviço em diferentes contextos e épocas. Partindo da fé, a Teologia Fundamental se ocupa primeiramente da Revelação, fonte primeira de toda fé cristã. Ela também, é anterior ao cristão, pois, antes de nossa consciência ou de nossa fé, Deus já havia se manifestado na história. Além disso, a teologia consiste na reflexão sobre essa fé eclesial: Fides quaerens intellectum.

O objeto fundamental de nossa fé é a narração histórica dos gestos de Deus, cujo ponto culminante é a entrada de seu filho Jesus Cristo em nossa história. Não obstante, um fator determinante, na nossa fé revelada, deve ser a preocupação com a miséria. No ato de fé, Deus não ocupa o lugar do ser humano, a fé é um apropriar-se, ao longo da história, de modo humano, do projeto proposto por Deus, para a salvação do ser humano. A fé é também, uma relação intrínseca com a história, influenciando-a e sendo por ela influenciada. De certo, a Revelação é uma proposta que tem como contrapartida a fé como resposta e a resposta deve ser atualizada e vista como livre. De fato, sempre houve uma tensão muito grande entre fé e razão. Santo Agostinho nos interpela dizendo que “se alguém me diz: que eu entenda para que creia, respondo: crê para que entendas”.

O primeiro capítulo da obra tem como título “Ponto de partida”. No nosso período histórico, passamos uma expressão em que as pessoas têm interesse em crer, e, isso faz que seja maior o desafio das diversas denominações religiosas com o passar do tempo. Nesse sentido, o fiel sempre procurou no estudo das teologias, respostas às suas indagações em diversas fontes. E nesse aspecto, a Teologia Fundamental traz consigo a Revelação, o que se pode chamar de fonte e inspiração da fé cristã. Do mesmo modo, sabemos que antes de qualquer indagação, Deus já teve a iniciativa primeira. A própria Teologia Fundamental tem a sua pergunta primeira: Por onde começar, pela fé do cristão, procurando sua intelecção sempre maior, ou a deter-se na Revelação e depois confrontá-la com as necessidades dos fiéis?

Inquestionavelmente, a fé que professamos, é uma fé verdadeira, no entanto, algumas questões podem e devem ser questionadas, melhoradas, lapidadas ou confrontadas, evitando assim, uma fé na Revelação ingênua e sem estrutura e solidez. De fato, as palavras de Santo Agostinho nos são convenientes: “Todos os homens querem entender, não há ninguém que não o queira, mas nem todos querem crer. Se alguém me diz: que eu entenda para que creia; respondo: crê para que entendas”.

Sem dúvida, foi no contexto da reforma protestante que a teologia fundamental teve que justificar a fé perante os adversários, refutando-lhes as críticas e objeções, mas também culminou numa linha direta e imediatamente teológica. Portanto, era dever de todo cristão que sentia necessidade de ver mais claramente os fundamentos de sua fé, isto é, da Revelação. A Teologia Fundamental tornou-se uma Teologia da Revelação. Esse fato e seus conteúdos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, ocuparam o centro dessa disciplina a partir da própria Revelação, como a fonte última de nossa fé.

Dentro de um contexto de conceitos de Teologia Fundamental, só a Revelação pode dizer-nos o que é a Revelação. Numa perspectiva do Concílio, a definição de Revelação é muito nítida: “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o mistério de sua vontade pela qual os homens, por intermédio do Cristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina”. Mas também, em todos os estudos devem aparecer a figura do que crê. É no sujeito, na sua experiência, na sua verdade, que está o ponto de partida de qualquer processo, inclusive o religioso. Com efeito, se a fé é uma resposta, deve-se proceder-lhe logicamente uma proposta. A Revelação é a proposta. A nossa fé passeia nesse confuso campo da autonomia e do condicionamento.

Se na Europa, o cristão se pergunta como crer em um mundo de descrença, de ateísmo, de secularismo; na América Latina, nos questionamos como ser cristão em um mundo tão religioso. Frente aos avanços que a humanidade se depara, bem como a face gloriosa, tecnológica, de progresso e riqueza, com promessas infinitas; surge a face assombrosa: a pobreza, a miséria, a doença, a degradação humana. O grito ético de que o carrasco não pode prevalecer sobre a vítima, aplica-se de modo igualmente dramático às explorações sem nome e ao desprezo dos grandes capitais em relação à miséria de bilhões de pessoas.

No segundo capítulo, fala-se sobre “A construção da fé”. Indubitavelmente, a fé é graça. Essa, por sua vez, requer o dom de Deus que chama o fiel a uma história e possui uma subjetividade que é seu mundo interior. Lá se encontram seus segredos, seus valores e a partir da sua experiência, compreende e interpreta o mundo. Esse mundo interior da fé se faz no duplo movimento da construção do nosso próprio “eu” e do acolhimento do dom do chamado de Deus para apostar em um tipo de vida. Urge em nosso contexto, o medo de submeter-se à liberdade, debate-se entre a vontade de construir-se e a tentação de abdicar sua liberdade, conferindo a outro. Além disso, defronta-se com a questão da Revelação, a própria consciência do sujeito: como posso crer? Por que e como devo aceitar uma Revelação que vem de fora? Como acolher essa Revelação sem renunciar a minha autonomia, minha liberdade pessoal?

Em meio à modernidade, na sua fase mais avançada, chamada por muitos de pós-modernidade, necessita ser superado por uma articulação integrada com a história, a sociedade e a nova compreensão do cosmo. Nessas perspectivas de subjetivismo, a fé cristã se exprime. A proposta pastoral hoje é encontrar uma expressão de fé que valorize a subjetividade na pujança moderna e pós-moderna, que enriquece tanto pela dimensão histórica e social, quanto pela nova consciência cósmica.

No terceiro capítulo, Libânio trata do tema: Crer num mundo religioso. Em meio às ameaças à fé cristã, Bonhoeffer, pastor protestante, diz: “passou o tempo da religião”. Sociólogos e teólogos previam uma comunidade pequena de cristãos. Karl Rahner escrevia sobre a “Igreja em diáspora”. A década de 1970 apagou as luzes, anunciando uma era secular.

Sem dúvida houve uma queda acentuada na prática religiosa em determinado momento. Entretanto, a última década do século, desmentiu rotundamente tais prognósticos. Inquestionavelmente, os últimos anos têm mostrado que o ser humano, além das necessidades, carece de bens espirituais. É feito para a verdade, beleza, sentido, bem, transcendência. A experiência religiosa, no entanto, está relacionada com nossa condição de criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece diante de quem está acima de toda criatura. Essa experiência ancora-se na condição humana.

O homem toma conhecimento do Sagrado, porque este se manifesta, se mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano. Com o despontar do novo século e com os anseios do próprio fiel, a Igreja seguiu a regra geral das instituições religiosas, ao ampliar lentamente sua face institucional em detrimento dos anseios e aspirações religiosas dos movimentos de fervor. Estes ou se desligaram da Igreja ou se acomodaram na mesma.

O quarto capítulo fala sobre “Crer num mundo de crise da razão”. No decorrer dos séculos, a fé cristã viveu e vive ainda, uma tensão com a dimensão religiosa. Desse modo, São Justino, Atenágoras e Orígenes mostraram a conseqüência entre a razão e a fé. A fé cristã quis também mostrar sua racionalidade não unicamente diante de surtos emocionais, mas também diante da própria razão. A teologia abrange nas obras de Agostinho e de Tomás, momentos de harmonia entre fé e razão. Entretanto, a ruptura veio na hora em que a razão humana compreendia sua autonomia como aquela que Deus lhe dera não se sentia em choque com a fé. Ambas reconheciam o campo próprio da outra. A fé recorria à revelação como a sua fonte principal e usava recursos de reflexão que a razão lhe oferecia. De fato, toda a racionalidade dessas realidades pode perfeitamente ser admitida pela fé cristã na sua condição e qualidade humana, havia uma concepção de fé como algo de fora de nossa realidade e em tensão com o humano.

O quinto capítulo aborda o tema sobre “A fé e a comunidade”. De fato, vivemos um acréscimo constante da comunidade eclesial. Desse modo, o fiel se sente chamado a testemunhar a sua fé. A fé, como ato do ser humano, implica racionalidade, liberdade, decisão, constitui-se fundamentalmente em relação a Deus, em uma comunidade, sobre a qual o ato de fé, é graça que nasce da Trindade. É o próprio Deus que nos chama a comunhão com ele.

Santo Tomás ensina que a graça não supre a natureza, mas a aperfeiçoa e supre-lhe os defeitos. Grosso modo, o ser humano é comunhão. No princípio, está a comunhão dos Três, não a solidão do Uno. As novas relações virtuais, extremamente envolventes, povoam solidões, aproximando pessoas desde seus PCs. A fé cristã por sua vez, entra em choque com o mundo virtual, pois, ela é conhecimento, afeto, práxis, celebração, antecipação do Reino definitivo, a qual se recebe numa comunidade. Além disso, ela é histórica, comunitária e social. A transmissão da fé, carregada pela cultura, se faz quase espontaneamente.

A Igreja é o sacramento do agir divino, por isso, podemos crer na Igreja como parte desse agir. Do mesmo modo, podemos crer na fé da Igreja, enquanto somos Igreja, sendo uma comunidade eclesial, no seu interior, como seus membros. Na origem da nossa fé e da comunidade, está a Trindade, sendo assim, a fé nasce da Trindade, ela é intrinsecamente trinitária. Crer na Igreja é crer em tudo o que ela realiza de salvação.

No sexto capítulo, Libânio comenta sobre “Crer e o seguimento de Jesus”. Indubitavelmente, o centro de nossa fé, não pode ser a Igreja, mas sim, Jesus Cristo, centro e ápice da nossa fé eclesial. Desse modo, não há outra forma de reconhecer Jesus se não formos seguidores dele, como seus discípulos o foram. Isso os apóstolos fizeram bem, no longo caminho do conhecimento e de amor a Cristo. A nossa fé cristã se alegra da herança de Israel e procura-se no Novo Testamento acentuar a continuidade com o Antigo, sem esquecer naturalmente a originalidade do próprio Jesus. O Novo Testamento, por sua vez, ao mostrar a continuidade já apontava para a originalidade de Jesus, acrescentando o Antigo aos títulos messiânicos e dando-lhes uma transcendência.

No sétimo capítulo, o autor fala sobre “Escritura e tradição”. Sabemos que a fé, é adesão à pessoa de Jesus, pelo qual, se dá a conhecer também de modo privilegiado pelas Escrituras. Olhando da parte de Deus, a Escritura constitui-se instrumento imprescindível para a perpetuação de sua Revelação. Essa característica peculiar dos livros Sagrados distinguiu demais livros e tradições.

A Escritura constitui um conjunto de livros em que autores inspirados consignam a Revelação, portanto, nos é imprescindível afirmar que a Revelação de Deus chegou até nós pelas Escrituras. Nelas, Deus se manifestou em ações e palavras até atingir a sua plenitude em seu Filho.

A Igreja antropológica e sociologicamente falando, vive a mesma tensão da tradição. A temática do diálogo inter-religioso vem ocupando cada vez mais espaço no mundo da teologia. A fé cristã é chamada a manter o equilíbrio entre auto-suficiência que rejeita qualquer outra forma religiosa com erro e descaminho da salvação e uma relativização tal, que já nem tem mais sentido ser cristão, nem, portanto, anunciar o Evangelho. O cristão do diálogo inter-religioso é desafiado a aprofundar sua identidade cristã em diálogo aberto com as outras religiões.

No oitavo e último capítulo, Libânio faz uma ilustração sobre “Crer num continente desafiador”. Em síntese, pode-se dizer que para G. Gutiérrez, “o motivo último do compromisso com os pobres e oprimidos, não está na análise social que empregamos, em nossa compaixão humana ou na experiência direta que possamos ter da pobreza”. É uma opção teocêntrica e que deita raízes na gratuidade do amor de Deus e é exigida por ela. A falta de coerência entre a fé que se professa e a vida cotidiana é uma das várias causas que geram pobreza em nossos países, porque os cristãos não souberam encontrar na fé, a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis pela liderança ideológica e pela organização da convivência social, econômica e política de nossos povos.

Na conclusão da obra, o autor diz que a Teologia fundamental na América Latina, sempre apareceu com sua peculiaridade própria. Desse modo, procura oferecer bases sólidas para que o fiel possa crer num momento histórico tão complexo. A Revelação, portanto, é como que um projeto salvífico de Deus, para o bem de seu povo. Doravante, a preocupação sobre a fé no Cristo ressuscitado, precisou ser reformulada e posta em ditames mais sólidos.

A reforma protestante trouxe conseqüências, de um lado, negativas, mas de outro lado, possibilitou um amadurecimento das próprias crenças da Igreja, como por exemplo, à Igreja coube o diálogo com as ciências e abrir-se ao diálogo para entender a realidade, interpretando-a. De fato, outra questão que nos preocupa é como crer num mundo de tanta religiosidade. Em meio à fé, cabe, no entanto, testemunhar um estilo de vida que fale ao mundo, a decisão ao Cristo ressuscitado. Diante disso, a fé é antes de tudo comunitária, e precisa ser exercida em uma comunidade eclesial. Além dessa perspectiva, ela abrange uma historicidade, na qual o cristão testemunhe a sua opção e sua vida.

Apreciação do texto

Diante das palavras do Libânio, resta-nos refletirmos sobre todos os temas abordados no texto. Temas esses, que são pertinentes na sociedade em que vivemos atualmente.

Na introdução da obra resenhada, o autor fala de uma busca madura e fundamentada da fé. É necessário que tenhamos consciência desta fé, principalmente, porque devemos professá-la diariamente. Ela surge diante das revelações implícitas no Evangelho, que devemos “beber”, “degustar”, o seu conteúdo de forma que possamos compreender verdadeiramente a sua essência. A partir daí, passar para a construção dessa mesma fé, mas alicerçada naquilo que o próprio Cristo viveu e ensinou, que é a luta pelo direito e pela justiça. O que falta e sempre faltou em muitos lugares é a prática da justiça, principalmente daqueles que muito tem, em detrimento aqueles que nada têm. Diferentemente do que afirma o pastor protestante Bonhoeffer, a religião não passou, ela está aí, na maioria das vezes, carente, mas ainda vive e é neste intuito, que cabe, a cada um de nós, fazer suscitar nesta religião a prática da caridade para com os pobres e este desejo não pode morrer, é isto que dá vida à religião.

Libânio coloca uma citação no início do quarto capítulo, que nos leva a pensar profundamente. Ele menciona uma frase de João Paulo II, a qual diz que “a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”. Na realidade, Libânio foi muito feliz em escolher esta frase, pois, ela revela na sua radicalidade o forte desejo que o ser humano tem de lançar asas, afim de que se possa contemplar um mundo mais justo e isso só será capaz, a partir do instante em que a consciência do homem, estiver mantida diretamente no que se faz mais necessário. Ele tem plena certeza de sua fé e daquilo que julga ser racional, mas no fim acaba se esquecendo de que a verdade somente será contemplada, a partir do instante em que estas duas asas estejam em plenas condições de vôo. Enquanto uma estiver danificada, o vôo será impossível.

O texto tem um conteúdo definitivamente rico e nos faz pensar que mesmo muitos sendo como que cegos, diante do sentido de não percebermos claramente a dinâmica de Cristo, a Igreja se encontra como uma mulher grávida, sofrendo as dores do parto, com medo de colocar seu filho no mundo porque ele não sabe o que o espera.