Conciliação e Violência na história do Brasil

CERQUEIRA FILHO, Gisálio & NEDER, Gizlene. Conciliação e Violência na história do Brasil. IN: Encontro com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1978. (p. 189-227)

O capítulo “Conciliação e violência na História do Brasil”, de autoria de Cerqueira e Neder constitui-se numa pesquisa na PUC/RJ sobre os aspectos ideológicos da literatura didática do Primeiro grau (atual Ensino fundamental). O capítulo divide-se em quatro partes: Introdução, Parte I, Parte II e Conclusão.

Na introdução os autores fazem uma reflexão lançando o olhar no território do passado numa forma de comparar a realidade do que aconteceu veridicamente na história do Brasil com o que é narrado pela historiografia oficial e constatam que esta procura “enfatizar a tradição e o papel da não-violência”, uma espécie de “tendência conciliadora” originada no período da Regência, época posterior à Emancipação política brasileira.

Os autores vêem nisso uma tentativa do país se mostrar superior em relação à América Latina. Tal posicionamento gerou a criação de um perfil do cidadão brasileiro como de um “homem cordial” expresso nas palavras de Holanda, como se isso fosse a contribuição do Brasil para o mundo. Assim "o brasileiro teria uma tendência ao compromisso, à conciliação (...) a um comportamento em que a troca de favores estaria (...) presente”. Tal posicionamento refletia-se nos livros didáticos, sobretudo os de História em que fatos como a Abolição da escravidão é narrada sem derramamento de sangue; a implantação da Ditadura sem oposição e nem rebeldes dentre inúmeros outros. Os autores acreditam que essa maneira de se contar a História brasileira de forma não violenta “corresponde a uma percepção falsificada da realidade concreta correspondendo a um mito que informa interesses específicos de práticas sociais de determinada classes sociais”, e fazem suas as palavras de Viana Moog no que diz respeito a reclamar uma revisão desse “mito clássico não-violento”

A partir desse raciocínio, e a análise de certos traços sociais do Brasil da época, chegam ao pensamento de que a violência está exatamente em se esconder a violência que sempre esteve presente na sociedade brasileira, “vista numa perspectiva de formação histórica”, não aparecendo dessa forma nos livros didáticos.

No nível ideológico os autores observam a ideologia nos três aspectos da concepção gramsciana: Aspecto globalizante, de concepção de mundo difundida em toda a sociedade e o aspecto de direção ideológica cujo papel é articular os três níveis essenciais (a idéia, a estrutura ideológica e o material ideológico). Assim, nessa conjuntura, segundo os autores, “a escola é vista (...) como uma agência ideológica por excelência e a bibliografia didática como um dos variados instrumentos de difusão (...) ideológico”. Os professores tornam-se não profissionais intelectuais criadores, mas funcionários e tomando o pensamento de Gramsci “divulgadores mais modestos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada”. Há nisso uma intenção da ideologia dominante em manter a ordem vigente, “constituindo-se, pois em violência simbólica”, pois através da inculcação da cultura, tal violência manifesta-se imperceptível e dissimulada, reforçando a relação de dominação e subordinação de uma classe sobre outra.

Os autores tomam como objeto de investigação de sua análise livros de Historia do Brasil, OSPB, Estudos Sociais e Moral e Civismo, de editoras expressivas. Nesse material foram encontradas várias provas da hipótese da violência ocultada, das quais foram retirados trechos como:

“...muitos países tem como marco inicial de sua história batalhas ou vitórias em guerras. O Brasil teve em uma missa os seu primeiro momento solene, e começou sua vida sem lutas, com indígenas e descobridores confraternizados e amigos”.LD23, pág. 102.

“...os brasileiros podem ser diferentes no que tem, mas sempre são iguais no que são”. LD16a, pág. 13.

“...a mistura de brancos, negros e índios deu origem a um povo sem preconceitos raciais”. LD7b, pág. 20.

Tais exemplos englobam os seguintes temas investigados: a ausência do conflito social (ou este amortecido); ocultação da violência do negro e da escravidão; etnocentrismo; mito da democracia racial; ocultação do problema do latifúndio; papel da igreja; violência externa à estrutura social; e a singularidade do Brasil frente à América Latina. Isso analisado em livros que narra a história do Brasil no período Colonial, Imperial e Republicano.

A conclusão que Cerqueira e Neder chegam é bem expressa pelas palavras de Norma Couri na apresentação do trabalho dos autores, de que a História do nosso país está dissimulada nos livros didáticos que amarrados no “mesmo saco apertado e malcheiroso” é levado por professores transformados em “agentes oficiais da ‘verdade oficial’ (...) às escolas (agências ideológicas)”. Dessa forma a educação também se transforma instrumento do Aparelho do Estado. Assim, concluem os autores, “na ótica da ideologia dominante e no jogo da política, fica explicitado que o que importa não é a verdade, mas a versão”, utilizando as palavras do político brasileiro José Alkmim.

Observando o conteúdo dessas análises e reflexões, bem como o assunto “violência difusa”, percebe-se que a violência está em se ocultar a verdade da História do Brasil como meio de inculcar nos indivíduos um comportamento pacífico, conciliador e afável além de exportação de uma imagem exterior de superioridade e de um povo cordial. Tal posicionamento encaixa-se na violência simbólica que como Bourdieu afirmou, é imperceptível, no qual as idéias repousam implícitas, e assim praticamente ignoradas é por isso reconhecida. Pertence também à violência difusa, isto é, a ocorrida no cotidiano, pois se expressa no dia-a-dia escolar, moldando o pensamento, ditando o que deve ser considerado verdade ou não, dominando os ânimos sem que se perceba, mutilando-se assim o cidadão na sua própria essência e identidade que é a sua própria história imersa na história do seu país.