FAZENDO ANTROPOLOGIA NO BRASIL

Por Ulisflávio Evangelista

Fazendo Antropologia no Brasil é uma obra organizada por Neide Esterci, Peter Fry e Mirian Goldenberg que apresenta o ofício antropológico através de diferentes métodos, objetos e abordagens teóricas. A obra é dividida em quatro partes: (a) Cultura e Identidades Nacionais; (b) Crença, Mito, Festa e Ritual; (c) Espaço e Classificação Sociais; (d) Memória, Trajetória, Repressão e Trabalho e reuni 13 artigos e autores que explanam um universo cultural bastante conhecido pelos brasileiros, explorando temas como: carnaval, ocupação do espaço urbano, conflitos no campo e na cidade, a religiosidade além de outros ensaios.

Como proposta metodológica, essa resenha apresenta um recorte e seleciona um artigo de cada “parte” da obra, totalizando, portanto, quatro artigos abordados que contemplam a totalidade da obra. Os artigos escolhidos foram:

(1) Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais (José Reginaldo Santos Gonçalves);

(2) O rito e o tempo: a evolução do carnaval carioca (Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti);

(3) Meninos de rua e criminalidade: usos e abusos de uma categoria (Rosilene Alvim);

(4) Leila Diniz e Cacilda Becker: dois estilos de ser atriz (Mirian Goldenberg).

1. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais (José Reginaldo Santos Gonçalves)

O autor inicia o artigo apresentando conceitos de autenticidade e a idéia de “aura” e suas relações com “sinceridade” na Moderna História Cultural do Ocidente. Esses conceitos podem ser aplicados a diferentes pessoas e objetos, por exemplo, a idéia de autenticidade aos objetos de arte está ligada às modernas técnicas de reprodução – apropriando-se dos estudos trabalhos por Walter Benjamin – dessa forma, o “autêntico” corresponde ao “original”, na mesma proporção que o “inautêntico” é equacionado à “cópia” ou “reprodução”. Para Benjamin, a “aura” de obra de arte se perde com o processo de reprodução em função da sua ligação com a “originalidade”, condenando assim, por exemplo, a fotografia e o cinema.

Nesse sentido, Gonçalves se apropria dessa teoria e a aplica no contexto dos chamados “patrimônios culturais”, em especial, exemplificado por duas cidades históricas distintas, a de Colonial Williamsburg (nos Estados Unidos) e Ouro Preto (no Brasil), com foco restrito na categoria de historic preservation, atividade que designa aquele conjunto de atividades associadas a preservação, restauração e recriação de objetos, prédios, conjuntos arquitetônicos, cidades antigas que sejam representativas de períodos históricos, épocas ou que mantenham vínculos com indivíduos célebres, heróis nacionais e acontecimentos históricos.

Colonial Williamsburg, segundo Gonçalves, sugere a imagem de uma miniatura. O “passado” parece existir dentro de uma redoma, desconectado de um presente, de um futuro ou de um passado “reais”. Dessa forma, em Colonial Williamsburg é sempre 1775, a cidade evoca poderosamente não a idéia de um “passado” cujo testemunho se faça presente no aspecto “antigo” de ruas, prédios e objetos. O desaparecimento da “aura”, de que fala Benjamin, parece aqui ter atingido um limite extremo.

Já Ouro Preto, para Gonçalves, é dimensionada no imaginário coletivo brasileiro como um poderoso símbolo da “identidade” brasileira, um símbolo barroco e mineiro. Assim, Ouro Preto e, por extensão, as demais cidades históricas de Minas, a arquitetura e a arte barroca passam a ser visualizados pelos ideólogos do patrimônio em termo de uma relação metonímica com o “passado” e a “identidade” brasileira. Em desfecho, Gonçalves aponta que o contraste estabelecido comparativamente com a cidade de Colonial Williamsburg é a idéia da aura, onde os aspectos da singularidade e permanência são enfatizados em detrimento da reprodutibilidade e da transitoriedade.

2. O rito e o tempo: a evolução do carnaval carioca (Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti)

Fugindo de uma visão romântica e alienada sobre o universo carnavalesco do Rio de Janeiro, a autora inicia seu artigo resgatando as palavras da jornalista Eneida que escrevia sobre o carnaval carioca na década de 50 e que ironizava os cidadãos mal-humorados que afirmam que o “bom carnaval já passou”.

Essa afirmação remonta um período anterior, uma lacuna encontrada no texto que deixa o leitor curioso sem resposta, mas que projeta um pensamento direcionado à festa carnavalesca, que em tempos atuais, é representada pelo desfile das escolas de samba. Nesse sentido, a autora propõe embasada em seu livro Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile (1994) a compreensão do desfile a partir de três idéias centrais: (a) A dimensão agonística dessa festa carnavalesca (o desfile é um grande ritual urbano contemporâneo); (b) A sua forma artística altamente elaborada (o enredo carnavalesco é o elemento básico do desfile); (c) Processos urbanos importantes (expansão da cidade rumo aos subúrbios e à periferia, a expansão das camadas médias e populares e a importância crescente do jogo do bicho). Com isso, a autora apresenta o “desfile” comparado com as expressões “tempo”, “calendário” e “cidade”.

O tempo é um tema caro para a reflexão antropológica, pois as sociedades e culturas humanas diferem radicalmente em sua maneira de conceber e apreender a sua passagem. O carnaval é parte de uma civilização e seu tempo tem uma dimensão estrutural, pois com ele experiências e atos socialmente definidos retornam a cada ano. Celebram-se a carne, o corpo, a finitude, com mascaras, fantasias e inversões, com a crítica e a sátira festivas à ordem social cotidiana que, temporariamente fica suspensa, mas que retornará no próximo ano. A autora finaliza a relação desfile x tempo, com a evolução dos desfiles das escolas de samba, como uma forma específica de brincar carnaval, que acompanha por um longo período a história da cidade do Rio de Janeiro.

Na relação desfile x calendário, a autora destaca a oposição entre o dia e a noite (o início é previsto para as 18h e o término acontece entre 5h e 7h da manhã), a relação engloba também a semana dos desfiles (com a entrega simbólica da chave ao Rei Momo, no sábado, e encerramento acontece no sábado seguinte com o desfile das campeãs), vale destacar também que, o desfile integra, a um só tempo: (a) o ciclo cristão ordenado de trabalho, lazer e festa e (b) um ciclo completo de morte e renascimento.

Em sua relação com a cidade, vale destacar o surgimento das escolas de samba no Rio de Janeiro por volta de 1920 e sua divisão por camadas, formada pelas grandes sociedades, os pequenos burgueses (que formavam os ranchos) e por fim, os blocos (organização menos estruturada). As grandes sociedades (organizadas pelos ricos) desfilavam com enredos de crítica social e política, com luxuosas fantasias e carros alegóricos. Os ranchos, formados pela pequena burguesia desfilavam também com enredo, fantasias e carros alegóricos, ao som de uma marcha característica. Por fim, os blocos, abrigavam as camadas mais pobres da população, moradores de morros e subúrbios cariocas, destacando negros e mulatos herdeiros das tradições culturais afro-brasileiras. A autora finaliza o artigo, afirmando que com o surgimento das escolas de samba essa divisão de camadas deixa de existir e também a estruturação do desfile enquanto forma estética que combinou linguagens artísticas distintas: a visualidade, a música e a dança.

3. Meninos de rua e criminalidade: usos e abusos de uma categoria (Rosilene Alvim)

Distorção recorrente e um falso estereótipo, assim pode ser definido o artigo elaborado por Rosilene Alvim, que discute as falsas associações realizadas pela mídia de massa ao apontar os meninos e meninas de rua com a criminalidade, com a marginalidade e também apontar o ambiente de rua, como um locus de indisciplina, de abandono familiar. Essas falsas representações caminham lado a lado com o “senso comum” (que numa visão antropológica é transmitida pelas diversas experiências que somos levados a vivenciar em nossa prática social) e que muitas vezes são reproduzidas pela imprensa, com um significado arbitrário. Partindo dessa premissa, a autora realiza um recorte que se baseia nos oito meninos mortos, no dia 23 de julho de 1993 em frente à Igreja da Candelária.

Alvim aponta que, a maioria das vítimas da Candelária tinha famílias que, apesar das dificuldades, trabalhavam principalmente em atividades econômicas informais e que os meninos encontrados no ambiente de rua estavam lá com o intuito de ganhar dinheiro para suas famílias e, em alguns acasos, em função da discordância do ambiente familiar. O raio-x da situação ainda engloba uma realidade de pobreza, habitantes de bairros pobres e precários, com poucas chances de freqüentar escola, dessa forma, o ambiente inicialmente temporário da rua torna-se definitivo.

No artigo, a autora apresenta uma breve notícia trazida pela imprensa após o massacre dos oito garotos: Marcelo Cândido de Jesus – o careca (14 anos); Marco Antônio da Silva – o Ruço ou o Come-gato (s.i); Paulo José da Silva – o Paulo Maluco (18 anos); Valdevino Miguel de Almeida – o Nojento (17 anos); Leandro Santos da Conceição – o Linguado (15 anos); Anderson de Oliveira Pereira - o Caolho (13 anos); Paulo Roberto de Oliveira – o Pimpolho (11 anos) e Guacimar da Silva – o Gambazinho (s.i) e conclui que pelas notícias jornalísticas, é possível desconfiar da parcialidade dos olhares sobre tais meninos e revelar os pressupostos presentes em diversas análises (jornalísticas ou acadêmicas) que contribuem para aumentar a desqualificação social de setores das classes populares.

4. Leila Diniz e Cacilda Becker: dois estilos de ser atriz (Mirian Goldenberg)

Partindo do referencial teórico de Pierre Bordieu (1968 e 1983), Mirian Goldenberg desenvolve nesse artigo, um estudo sobre a influência existente nas camadas sociais, de modo mais específico, na relação entre “sociedade e indivíduo” e “indivíduo e sociedade”. Como recorte na pesquisa, a autora percorre o campo artístico (teatro, cinema e televisão) representado pelas atrizes Cacilda Becker e Leila Diniz em suas respectivas épocas e trajetórias.

Outro estudo referencial presente na pesquisa de Goldenberg é do autor Norbert Elias (1994), intitulado Mozart: sociologia de um gênio. Esse estudo é um importante referencial teórico para compreender o que uma determinada vida diz sobre o momento histórico, cultural e político em que ocorreu, sobre comportamentos e valores que reflete ou antecipa e as condições sociais existentes para o aparecimento de um artista singular.

Com base, fundamentalmente nesses dois autores, Goldenberg discute os dois momentos artísticos formados, respectivamente, por Cacilda Becker e Leila Diniz. A primeira atriz representa papel dominante no campo teatral no momento em que Leila, na posição de novata inicia sua carreira, representando, portanto, a lógica da comparação (contraste) entre as duas atrizes. Cacilda Becker estréia no teatro em 1941, no Rio de Janeiro, um instante bastante embrionário no campo, quando praticamente não havia mercado instituído para o ofício de ator. Ela é uma das primeiras atrizes profissionais no país e conquista uma posição dominante neste campo no Teatro Brasileiro de Comédia, sua trajetória possibilitou a formação de um público teatral. Leila Diniz nasce quatro anos após a estréia de Cacilda no teatro. Com 19 anos, Leila estréia sua única peça “séria” no teatro ao lado de Cacilda Becker. Leila Diniz entra em um momento onde o campo artístico está mais consolidado e também, mais competitivo (teatro, cinema e televisão). Leila como novata ou seguia um estilo – que se corporificava em Cacilda Becker – ou criava um novo estilo, uma nova forma de ser reconhecida. Leila criou um novo estilo, e consolidou um nome no campo artístico através de papéis que se aproximavam de seus comportamentos na vida pessoal. Ao contrário de Cacilda que “fez um nome” no teatro, Leila não deixou de ser boa atriz, mas “fez um nome” através da afirmação de determinados comportamentos femininos, na vida pessoal e na arte. O caráter distintivo de seu nome se fez através da afirmação desses comportamentos.

Goldenberg finaliza sua análise, afirmando que a comparação dos estilos de “ser atriz” de Cacilda Becker e Leila Diniz, está condicionada aos diferentes estados do campo em que as duas atrizes se inseriram. Cada uma parece ter um estilo que está associado ao momento específico de entrada no campo artístico. A análise da trajetória de Cacilda Becker permite constatar como ela contribuiu para a implantação de um padrão de excelência de “ser atriz”, ligado ao padrão vigente nos centros internacionais. Já para Leila Diniz, a sobreposição de sua vida privada em sua vida pública, o não-distanciamento entre o biográfico e o artístico, a utilização da própria vida como matéria-prima de sua arte, parecem ser fatores decisivos para explicar o sucesso de Leila Diniz.