A lua numa gota de orvalho. Escritos do Mestre Dogen

Sobre o Zen

O zen é o retorno ao espírito original do budismo, um protesto contra a prática puramente literária baseada na leitura de sutras e enfatiza a experiência direta que cada um deve ter por si, e começa com o próprio Buda.

Em um de seus sermões, Buda mostrou uma flor e nada disse. O outro, seu último ensinamento, foi a sua morte, experiências diretas e não mediadas por palavras.

Para que uma experiência direta possa ser vivenciada é necessária a atenção plena no que se estiver fazendo, seja lá o que for. Portanto o Zen não diz respeito apenas ‘a meditação, ele pode ser praticado na vida cotidiana.

Os textos do zen destacam o aspecto absurdo da mediação por palavras e enfatizam a ação direta.

O zen histórico começa com a ida de Bodidarma ( Da Mo em chinês, Daruma em japonês) para a China, em fins do século V, e o termo zen é uma tradução de dhyana (chan em chinês, zen em japonês) que significa meditação, método recomendado por Bodidarma para a obtenção de prajna ( conhecimento intuitivo).

Bodidarma é considerado o primeiro patriarca da China.

O fantástico Bodidarma deixou várias histórias, além da lenda de ser o criador do kung-fu, prática física destinada a reforçar a musculatura dos monges que ociosamente deixavam-se estar sentados, e ficavam com as pernas atrofiadas, sendo surrados por malfeitores. A partir de Bodidarma, os monges passaram a botar pra quebrar.

Um dos textos atribuídos ‘a Bodidarma, enfatiza as “duas maneiras de entrar no caminho”.

Segundo ele, a primeira maneira é através da razão, que é a compreensão do espírito do budismo através da leitura das escrituras.

A segunda maneira, que é a grande novidade, é através da conduta, nos quais todos os atos estão incluídos, compreendendo: 1) saber se afastar do ódio; 2) ser obediente ‘as condições; 3) não desejar nada; 4) estar de acordo com o darma.

O Zen está baseado na segunda maneira.

Mas, ressalte-se, para quem não pode ser monge, nem dedicar a vida ‘a meditação, a primeira maneira é aceitável, como consolo.

A prática da meditação tem como objetivo matar o eu. Matar o eu equivale a neutralizar os pensamentos ilusórios. Ficar parado sem nada fazer e manter a mente vazia. Daí se dizer que é um fazer sem nada fazer. A obtenção da paz, samadhi, pode ocorrer. Mas ela não é uma conquista permanente. Não é uma revelação que eleva o praticante a categoria de santo. Tem que ser reconquistada todos os dias, pela prática. Daí se dizer que a prática é a paz (o samadhi) e que deve ser exercida sempre.

Mas o Zen é dinâmico. Há exercícios, além do kung-fu, destinados a acelerar a conquista.

Em todas as religiões há orações, palavras destinadas a tranqüilizar. Os tibetanos têm mantras. O zen tem o “koan”.

A repetição seguida das palavras das orações pode, em algumas ocasiões, anular o significado das palavras. O mesmo ocorre com os mantras, têm um significado, mas viram apenas sons, com a repetição. As orações e mantras, no fundo, significam: seja feita a Sua vontade.

Os koans são afirmações ilógicas, e são fornecidos pelos mestres aos discípulos como um enigma insolúvel que deve ser solucionado. O seu significado parece ser demonstrar a inutilidade das palavras. Os ocidentais são fascinados por koans, porque tem similaridades com o surrealismo. Seu efeito é o mesmo da oração, quando o discípulo o abandona como insolúvel, ou o entende como intuição.

O Zen migrou para o Japão, com mestre Dogen, e ali desenvolveu-se extraordinariamente. Influenciou a cultura nipônica com as diversas artes e ofícios, os Dôs, palavra derivada de Tao. Tais práticas são dinâmicas e devem se exercer, sempre, com o vazio da mente. Daí se dizer que a ação precede o pensamento. Mesmo que se diga que a ação não visa lucro, nem que dela se espera alguma utilidade, ela é praticada por si, como a dança, o seu resultado é belo.

Caligrafia, arranjos florais, a arte da esgrima, o arco e flecha, as artes marciais, a cerimônia do chá, a agricultura, jardinagem, enfim, todas as práticas cotidianas, exercidas com perfeição, com atenção, com a mente vazia, em ações exemplares que também podemos praticar em nossas vidas cotidianas. Eis como o zen pode entrar nas nossas vidas, já que não somos monges, e nunca o seremos. Fazer, sem expectativa de lucro, fazer perfeitamente, cada ato da vida.

Como única citação, colocarei as palavras de Taisen Deshimaru Roshi (?-1982), em seus comentários ao “Canto do Satori imediato”, de Yoka Daishi (655-713).

O Espírito do Gesto (Zanshin).

Eis aí um termo que encontramos sempre na prática da esgrima japonesa (Ken-do). Zanshin é o espírito que fica, que permanece sem se apegar, o espírito que está sempre vigilante. Toma-se cuidado com a ação e fica-se atento ao que pode suceder a seguir. Há, por exemplo, uma maneira zanshin de se fechar uma porta, de se colocar um objeto, de fazer uma refeição ou de se conduzir um carro, e, até mesmo, de ficar imóvel. Colocam-se os objetos com precaução, suspende-se o movimento uma fração de segundo antes de se fechar uma porta, a fim de não a bater. (...).

(...) Originalmente, a palavra zanshin provem da arte do combate com espada e significa “prestar atenção ao adversário”.

O zanshin se aplica a todos os atos da vida. A beleza natural do corpo é o reflexo do treinamento do espírito na concentração dos gestos. O trabalho manual (samu), quer se trate de trabalhos caseiros, ou de agricultura, de arte ou de artesanato, não condiciona apenas a saúde do corpo e a habilidade dos dedos, mas também a agilidade do cérebro. Através do exercício, os gestos tornam-se naturais e controlados e o corpo encontra a sua beleza. A ação natural é inconsciente e perfeitamente bela.

Existe uma profunda relação entre os dedos e o cérebro. Os antigos conhecem essa relação e prestaram muita atenção a esse fato. Anaxágoras de Clazomene, de quem Platão foi aluno, escreveu: “O homem pensa porque tem uma mão”.Nós devemos saber pensar com os nossos dedos.

Fontes:

Textos budistas e zen-budistas. - Ricardo M Gonçalves (org)

A doutrina zen da não-mente.- DT Suzuki

Shodoka- O canto do satori imediato.- Yoka Daishi

O anel do caminho.- Taisen Dashimaru

A lua numa gota de orvalho. Escritos do Mestre Dogen - Kazuaki Tanahashi (org)