LEITE DERRAMADO

(Chico Buarque)

Causou um certo frisson a escolha de Leite Derramado como melhor romance brasileiro do ano passado, distinção essa atribuída ao vencedor do maior prêmio da literatura brasileira, o estimado e desejado Jabuti, entregue pela Câmara Brasileira do Livro desde 1959 aos maiores destaques literários do país em cada segmento.

O livro é, na verdade, uma saga familiar que acompanha seus descendentes, da riqueza luxuriante até a decadência absoluta, coisa que não é nenhuma novidade para um leitor mais experiente. A diferença entre essa e outras sagas sobre famílias decadentes é que o autor é Chico Buarque, um dos maiores gênios da MPB, que chega ao seu quarto livro com todo jeito de que começou a gostar da coisa.

Para alguns – os fãs do cantor e compositor, principalmente - o prêmio foi mais do que merecido. Já para outros, apenas mais uma indicação do puxa-saquismo reinante nesses tempos de domínio petista, como foi a terrível indicação de "Lula, o filho do Brasil", para representar o país na escolha dos filmes que concorrerão ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. O fato de Chico Buarque já ser um compositor consagrado talvez tenha pesado na escolha do livro para o prêmio, mas basta ler os dois primeiros capítulos para saber que o autor é um excelente contador de histórias, talvez não tanto quanto quando conta através de suas canções - perdão pelo trava-línguas - mas bem acima da média atual a que estamos acostumados.

Eulálio d'Assumpção é um homem velho, doente e se encontra à beira da morte em um leito de hospital. Espera pela morte, mas enquanto isso, recebe a filha, única pessoa que ainda perde seu tempo com ele (se bem que por obrigação), e desfila o seu rosário de recordações. É um homem que viveu o melhor que vida pode oferecer graças ao seu sobrenome, outrora poderoso e que abria portas sem precisar tocá-las, mas viu o passar dos anos levar embora tudo o que tinha de valor.

Velho, dopado, solitário e decadente, ainda assim Eulálio ostenta a mesma empáfia de quando era poderoso e invejado: Assumpção, assim mesmo, com P, como faz questão de frisar o centenário personagem. E solta a sua voz, rememorando a história da família para quem estiver disposto a ouvir e até mesmo para quem não faz a mínima questão. Todos, sem exceção, a filha, médicos, enfermeiras e até personagens que parecem só existir nos delírios de Eulálio, são convocados a ouvir suas reminiscências de outros tempos.

Buarque deixa muito claro que não tem intenção de contar a história no sentido de desvendar o país dos últimos dois séculos. É claro que todas as situações históricas estão lá, desde a corte, o Império, a libertação dos escravos, a proclamação da república, o golpe de 64, mas esses fatos servem apenas de pano de fundo para a decadência dos Assumpção, que é contada sem meias-palavras e sem guardar ordem cronológica, pois para Eulálio o tempo não funciona mais como outrora. Dessa forma, ele se recorda principalmente de Matilde, a esposa que o abandonou e grande amor da sua vida. Frustrado, lamenta terrivelmente o abandono, pois de tudo o quanto perdeu na vida (e não foi pouca coisa) Matilde é a única de quem realmente sente falta. Essa saudade irá lhe doer mais do que a dor de se ver pobre e sem ter onde cair morto, sobretudo lhe faz um homem amargo e rancoroso. Apesar do humor ácido e sarcástico do livro, a visão geral é de pessimismo, com todas as mazelas e delitos praticados pela família Assumpção, numa espécie de retrato da sociedade brasileira desde tempos remotos refletidos em um único personagem. Compre o livro, leia várias canções.

Chico Buarque ainda não alcançou na literatura o mesmo status que a música lhe conferiu. Mas também não fez feio, vale ressaltar. O seu “Leite Derramado” pode não ser uma obra-prima, mas é um romance correto, honesto e bem escrito.

O que mais se deveria esperar de um livro?