O mal absoluto

Anos atrás, quando freqüentava os corredores da universidade, andava por um deles descontraído quando, de repente, vi um cartaz muito simples, sem nenhuma ilustração, onde pude ver nitidamente o aviso “O mal absoluto vem por aí”.

“Mal absoluto?!” – pensei intrigado, e segui andando com aquilo na cabeça.

Já na “Praça da Alegria”, uma área de lazer que separa dois blocos do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), encontrei uns amigos e, ainda tonto com o inusitado aviso, lhes perguntei se também sabiam dele.

- Você viu o cartaz? – indagou um deles, o Prof. Arturo Gouveia, estampando um sorriso de satisfação, e acrescentou:

- Está funcionando.

Depois, confessou que a estripulia tinha partido dele, e mais tarde vim saber que “O mal absoluto” era o título de um de seus livros, publicado pela Iluminuras, uma editora paulista.

Na página inicial do livro (que o autor me dedicou classificando sua obra como “fantasias concretíssimas de um estreante que já tem a indicação do Nobel), intitulado “Pró-juízo ao leitor”, numa mal disfarçada modéstia, ele nos adverte para o fato de que seu livro “é um romance confuso, no qual eu se adotei a violência de um Rubens Fonseca ou o ceticismo irônico de um Voltaire ou de um Sartre, não o fiz à altura”. Se não fez à altura foi porque os filósofos franceses Voltaire e Sartre, apesar da ironia galhofeira do primeiro, não se utilizaram, como o Prof. Arturo, do estilo escrachado dos brasileiros para escreverem suas obras, e a confusão maior presente no Mal Absoluto de Arturo, contudo, é estabelecida quando o autor o classifica como “um romance”, quando parece claro tratar-se de um conjunto de contos.

Num deles, “O ápice da crueldade”, um pacato pai de família momentaneamente defende a opinião de que “a violência é a coisa mais degradante da espécie humana”, mas que “o pior é que pouco se consegue sem ela”. Enquanto assiste a um telejornal que, como a maioria, só noticia desgraças, conta à família um episódio de sua infância, junto com uns coleguinhas chamados sutilmente de “Jacaré” e “Brinquedo do cão”; quando tramou um plano para dar um “susto bacana” na velha professora de Educação Artística, que queria fazê-los repetir o ano por causa de seus débitos com a disciplina, quando já tinham passado em todas as outras. Lembrando-se do caso, vez em quando por mais um alerta da filha sobre uma desgraça noticiada na TV, o homem conta os horrores que os três encontraram pelo caminho enquanto procuravam a casa da professora a fim de parti-la.

“Na profissão sou cínico e cênico. / O direito é um palco teatral. / Tanto faz o açúcar ou o arsênico. / Defendo o bem, depois defendo o mal” é um poesiasinha sacana que vamos encontrar em “A imaginação no poder”, onde um ex-membro do Partido Comunista perde a esposa, grávida de oito meses, durante uma manifestação de grevistas, depois de ela ter sido espancada por um soldado, absolvido num julgamento por um advogado “capaz de defender Adolf Hitler num tribunal de Israel”. Daniel, protagonista da história, finge converter-se ao cristianismo “puxando do fundo de sua alma medíocre o diabolismo que o tornará inesquecível na memória da cidade”.

O desfecho do conto, recheado de ironias, poemas e até contendo um artigo intitulado “Literatura e pobreza”, merece ser descoberto pelo leitor, principalmente se ele ainda não tiver escolhido o direito como profissão.

“Fosse o que fosse, percebi pela primeira vez a distância da Universidade. O mundo corria rumos próprios, os acadêmicos se enclausuravam nas grades das idéias. Os palhaços de máscaras, frente à Assembléia de Deus, poderiam estar sendo mais úteis que nós”.

É assim que, num trecho de “Palhaço de máscara”, o professor Arturo expressa o pensamento de seu personagem sobre a ocupação dos acadêmicos, de sua própria enquanto professor universitário e a de seu amigo, também professor (?), que dirige seu automóvel pegando um atalho por uma favela a caminho de uma palestra na Universidade – onde outro professor francês discorrerá sobre as “novas idéias que efervesciam os miolos da Europa. Idéias sobre o fim do sentido da história; o fim da história, o fim do fim, o metafim, a nadificação do tudo (a absoluta e a relativa), a ilusão da matéria, o desprezo pelos conceitos elevados, o mito da realidade, o mito do mito, o metamito, enfim, o fim”. Jean-François Chegautard (sobrenome derivado de “chegou tarde”), naturalmente atrasado, chega reclamando de tudo, inclusive da discriminação contra seu filho, um negrinho “recém-chegado e recém-apedrejado pelo preconceito brasileiro”. Enquanto Chegautard discorre longamente e critica vorazmente o conceito de responsabilidade, “uma das maiores crueldades ideológicas (...), uma esplêndida mentira”, o francês – e todos os presentes – é surpreendido pela entrada de assaltantes no auditório, que lhe sapecam aos pés o filho ensangüentado e morto.

Mas esse não é o fim dessa história, onde o leitor, mais uma vez, tem “uma feliz” surpresa.

Entre inúmeros outros contos e um texto teatral, cujo nome dá título ao livro, a única metáfora futurista presente na obra é “A imaginação no poder”, onde três séculos à frente um reitor da Universidade Federal e historiador é chamado para abrir a biblioteca, lacrada há três séculos pelo Arcebispo da Paraíba de então, Dom Euclides Martinho de Gadelha, e revelar os fatos da vida dos antepassados, ou seja, a nossa própria vida.

Na presença de milhares de jovens alegres e descontraídos, o Arcebispo, Dom Claro Alves, é convidado a responder perguntas como: “Quem foi Santa Teresa?”, ou “Quem foi João Pessoa?”, ou “Como pode um homem matar outro homem, confundindo questões políticas com questões pessoais?”, ou ainda “Como pode haver crise de superprodução?”, esta última questão causa de gargalhadas de indignação e descrença por parte dos estudantes de três séculos à frente, que consideram nossa insólita realidade histórica não mais que fruto da imaginação dos antigos.