BALTHASAR, Hans Urs Von. O cristão e a angústia. São Paulo: Fonte Editorial, 2004, 2º impressão, 87 p. Tradução: Antônio Alves Guerra.

Introdução

Kierkegaard em “O conceito de angústia” (1844) foi o primeiro a tratar o tema da angústia sob o viés da teologia e da psicologia. Só com os primeiros sintomas da moderna angústia no mundo com o materialismo (séc. XVIII) e o pós-romantismo (séc. XIX) que grandes filósofos revitalizaram esse tema. Pode-se dizer que as profundas e atormentadas análises de inspiração teológica de Kierkegaard serviram de base à psicanálise e à filosofia existencialista, para uma representação dos abismos e auto-encontros do espírito finito.

Necessita-se, portanto, de uma séria “teologia da angústia”. Parece que foram, sobretudo, os poetas que preencheram a lacuna deixada pelos teólogos: Bloy, Bernanos, Claudel. Uma teologia da angústia torna-se necessária porque “nem o espírito nem a alma com a sua angústia são medidas e garantias para uma justa visão e interpretação do real, mas sim a PALAVRA DE DEUS que está acima do espírito, da alma e das angústias” (p. 13). Talvez uma saída para essa teologia esteja no “procurar ouvir a palavra exata de Deus sobre o tema que agita tão profundamente os nossos tempos, esforçando-nos por compreende-la e por apropriarmo-nos dela” (p. 13). Alguns motivos dessa angústia: medo humano do mundo mecanizado, do ser humano engolido impiedosamente com sua frágil estrutura corpórea e espiritual. Nesse mundo a expressão “neurose” soa repetitiva. A Revelação (na Escritura) fala da angústia com matizes diversificadas (I). Já que esse fenômeno da angústia é visto de forma múltipla, se torna necessário, portanto, “formular leis, que valham tanto para a teologia cristã da angústia como para a prática da vida cristã (II). Na terceira parte (III), se aprofundará mais na “essência da angústia”, com a abissal interpretação filosófica – teológica de Kierkegaard e seus continuadores.

Capítulo 1: “A palavra de Deus e a angústia” (p. 17 – 40)

De início se percebe que a Palavra de Deus não conhece o medo da angústia, diferentemente de outras filosofias ou sabedorias de vida. Na verdade, a Palavra de Deus considera-a com um dado fundamental da existência humana. O próprio Von Balthasar diz que a angústia é para a Palavra de Deus “qualquer coisa como uma dado genérico, fundamental, neutro da existência humana” (p. 18), atestando isso em Eclo 40, 1-7: medo geral, neutro que não poupa ninguém. Portanto, a angústia é o denominador comum a que se reduzem a realidade cotidiana e a irrealidade do sonho, e, é porque se deve reduzir a ele que a angústia existe. Eclo 9, 4-9; 11, 7-8, expressam bem, também, essa realidade. Diante dessa ambivalência da angústia, o destino em Deus se torna a saída para a compreensão (Eclo 41, 5-7). Eis a angústia universal. Já a angústia dos maus (Sb 17) é figurada na treva do Egito que corresponde à angústia que aflige o homem mau nas trevas saídas do abismo escuro (sheol) e que Deus lhe infligiu como castigo (Ex 10, 21-23). Vê-se aí em Sb 17, 1-18, 1, a descrição de uma angústia total, motivada pela sacrílega escravidão do povo e do Reino de Deus na terra.

Von Balthasar percebe que o “tormento que o homem inflige a si mesmo nesta angústia é maior que a própria treva do Hades que interrompe toda a comunicação de homem para homem” (p. 22). Então, nesse isolamento subjetivo do pecado já está contida a auto-exclusão em Deus, refugiando-se no obscuro mundo subterrâneo com o qual Deus não tem relações. Jó 24, 16-17; Is 29,15 e Sb 18,4, falam dessa realidade. Essa perda da luz que liga e unifica e o ficar-se prisioneiro na solidão comporta a perda da realidade e o encerramento no mundo dos fantasmas e sombras. Esse mundo é uma espécie de anti-realidade que é objetiva-subjetiva e infundada, já que consiste num abandono daquela condição interior do espírito. É um quadro de angústia total, em que tudo está em função da angústia. A angústia age sob duas maneiras: 1) desespera da possibilidade de um socorro, e; 2) aumenta o sofrimento, não permitindo nenhuma reflexão e nenhum raciocínio sobre as causas. Nessa angústia dos maus existe uma absoluta proibição de a conhecer, de se deixar prender por ela. Em Is 8,12 se fala que a experiência do medo e do ter medo equivaleria a não crer, evidente também em outros textos como: Sl 118,6; 56,5; 46,3-4; 3,7; 22,4; 27,1-2; Pv 3,24-25; 1,33. Na Antiga Aliança fé e direito de habitar esta terra são coisas que dependem uma da outra (Dt 20, 2-4. 8). Assim, como a grandeza de Deus causa medo, sua revelação total em Cristo (Kénosis), sua existência concreta também para a Antiga Aliança. O homem fascinado mal consegue compreender o amor que se revela que está escondido lá no fundo na forma humana (Dt 4, 24; Is 6, 5; Dn 10, 9; Is 8, 13). Essa pureza revelante de Deus revela as faltas e infidelidades humanas de modo que a angústia continua existindo enquanto se luta em alcançar o domínio da paz. Então, de um lado há a exigência de Deus de uma decisão absoluta com a promessa de se livrar da angústia e de outro, todas as sanções da angústia prometidas contra quem não se decidir, isto é, “a ordem de proceder até se emancipar da angústia e a extrema ameaça da angústia para quem se voltar atrás - Dt 28 - p. 28-29). Há a lei e os profetas, ameaças contra a fidelidade à aliança e, existe a ordem de não ter medo que também deriva daí. Esta luta da angústia para chegar à não-angústia diante de Deus tem, na religião da Antiga Aliança, diversos graus e aspectos. A primeira é a do homem fiel à aliança que é vencido pelos inimigos de Deus (Sl 55,1-7); é um medo inteiramente humano que se confessa e se dirige a Deus. Há também a angústia que experimenta o “justo”, este, empurrado pelo próprio Deus até a orla extrema da angústia a fim de que possa reencontrar-se, orando, no centro da esperança. O Sl 107 expressa bem isso: arrancar do coração do homem a angustiosa invocação a Deus, admirar a grandeza das obras de Deus perante os abismos; existem, nesse salmo, as culpas dos homens e a vontade de Deus. O que importa é que Deus quer ouvir o grito de angústia a Ele dirigido. Von Balthasar diz (p. 31), que, “a angústia de Jó é a máxima expressão da angústia do justo na Antiga Aliança”. Em Jó há a forte questão da culpa: por um lado os amigos e acusadores de Jó põem em realce o momento da culpabilidade e o sofredor (Jó) quer proclama sua inocência; na sua angústia ele está diante de Deus (Jó 9, 19-31. 33-34). Então até aqui se pode falar de duas espécies de angústias (Antiga Aliança): a dos maus, fruto do afastamento de Deus, e a dos bons, aprovada por Deus e tem a finalidade de abrir a alma para Deus na invocação da misericórdia. Na angústia do mau não há uma falta da “providência misericordiosa”. Na Nova Aliança há uma recordação da antiga, enquanto a angústia difusa da humanidade em geral, porém “é nas visões finais do Novo Testamento que a angústia dos maus atinge alturas superlativas” (p. 34). O livro do Apocalipse leva à hipérbole os “horrores” do livro da Sabedoria. Assim também, a “angústia dos bons” é levada a níveis supremos. Aqueles que no Antigo Testamento se defrontaram com Deus, se retiravam a tremer; na Nova Aliança se vê alguns personagens importantes também, como: Zacarias (Lc 1,12), Maria (Lc 1,19), José (Mt 1,20), Pedro (Lc 5,9), discípulos no Tabor (Mt 17,6), fugitivos durante a paixão (Mc 14,50), mulheres no sepulcro (Lc 24,22; Mc 16,8), Paulo (At 6,9), e outros. Von Balthasar diz que “Deus não podia tornar-se homem senão conhecendo a angústia humana e assumindo-a” (p.37). Em Jesus a angústia também é evidente: no túmulo de Lázaro (Jo 11,33-38), no Templo (Jo 12,27), no Monte das Oliveiras a angústia é definitiva. Von Balthasar diz que “todas as angústias do Antigo e do Novo Testamento são resumidas e potencializadas ao infinito, porque a pessoa que sofre nesta natureza humana é próprio Deus infinito. É a paixão do infinitamente puro, do infinitamente justo (...) é o sofrimento por representação deste puro por todos os impuros” (p. 37). O ponto culminante desta angústia se dá na cruz, no atual abandono do Filho por parte do Pai. Nesse sentido “só o Filho sabe perfeitamente o que é ser abandonado pelo Pai, porque só Ele sabe quem é o Pai e o que significa a proximidade e o amor do Pai” (p.38). Essa angústia de Jesus tem correspondência com as angustiosas dores de parto (Is 13,8; 26,17-18; Jr 4,31; 49,24; 50,43; 22,23; Mq 4,9-11; Gn 3, 16). No Novo Testamento essa imagem da mulher sofrendo as dores de parto tem seu completo significado. Nesse sentido, em Paulo, essas “dores de parto têm a possibilidade de ser participação da angústia fecunda da cruz” (2Cor 6,4; 1Cor 4, 15; 2,3; 2Cor 11,29; 12,9). Portanto, na teologia de Paulo, a “angústia que passa pela cruz é fecunda e a do mundo se torna, pela Cruz, na angústia que acompanha o nascimento do novo mundo (Rm 8,19-27)”. Enfim, a “sensação subjetiva” da angústia se torna um processo objetivo de dilatação (Sl 4,1).

Capítulo 2: “O cristão e a angústia” ( 41 – 62)

Em continuidade ao capítulo anterior, já no seu final, foi clara a intuição de que a “cruz” superou a angústia humana. Ela faz parte agora do conjunto das forças que o Senhor triunfou. Além disso, Cristo aboliu tanto a finitude como o caráter de esperança da graça, ao derrubar, com a encarnação, a barreira existente entre céu e terra, com sua paixão redentora e descida aos “infernos”. Disto de conclui que não há motivos da angústia para o redimido (Jo 16,33; 1Cor 15,26; Jo 12,31). De uma ponta à outra da Nova Aliança fala-se desta submissão, deste debelar de todas as potências do mundo por obra do Filho de Deus, eleito como rei (Hb 10,13). Também a angústia é afastada e superada de uma vez para sempre. O cristão, por intermédio de Cristo, não precisa mais ter medo e vive na e da fé. Tanto em Paulo como em João a luz de Deus “sana”, afasta o medo. Em João essa luz é doce e delicada. Em Paulo é triunfal e fulminante que pode mudar até o último medo. Na verdade, a caridade perfeita expulsa todo o temor porque o temor supõe o castigo e aquele que teme não é perfeito na caridade, e o temor não fica bem junto da caridade (1Jo 4,16-18). O sermão da montanha (Mt 5-7) contém o mandamento rigoroso de Cristo aos seus de não temerem em nenhuma tribulação, por maior que ela seja. Paulo destaca que é possível ser feliz em meio às contrariedades; esta é a felicidade dos mártires (Rm 5,3; 1Cor 7,4). Enquanto que a Nova Aliança impõe ao cristão a obrigação de não ter medo, o homem moderno dirá que com uma proibição não se exclui o fato de que a angústia exista. A “consciência moderna” constata que o “medo da morte” e a “angústia da culpabilidade” são causas das neuroses modernas e a filosofia existencialista afirma que só se supera a angústia, aceitando-a. Para o cristão autêntico não há mais timidez, já que a angústia foi proibida por Cristo. A angústia neurótica encontra seu grande remédio e antídoto no “sim” à graça divina. Só um cristão que não se deixe contagiar pela angústia neurótica da humanidade moderna tem alguma esperança de poder exercer uma influência cristã sobre o seu tempo. O cristão, imbuído da graça divina, indicará os caminhos para se livrarem de estéreis tumores e saírem corajosamente para o ar livre da fé. Pode-se dizer que essa graça de Cristo para o cristão provém da “cruz”; toda alegria é alegria da cruz, marcada com esse selo. Von Balthasar belamente diz que “a cruz abre uma perspectiva nova a graça e a permissão de se angustiar na angústia de Cristo, na medida que a graça concede”. Portanto, a graça muda o valor da angústia até a transformar no seu contrário. A angústia dada pela cruz é o fruto e o efeito de uma comunicação: é um alargamento, uma “dilatatio” do amor na cruz que não pode deixar de produzir uma nova dilatação em quem dela foi feito participante. Objetivamente, o motivo da angústia proibida ao cristão é o pecado que é: alienação, fuga, letargo, esterilidade, impressão de estar perdido, queda no abismo, ensimesmamento constrangido, reclusão, enquistamento, segregação. Já o motivo da angústia da cruz não é outro senão o amor de Deus que assumindo o mundo da angústia e superando se torna o oposto do pecado: doação, disponibilidade, vida, fecundidade, sentimento de segurança, amparo, dilatação e emancipação. A angústia dos amigos de Jesus (irmãs de Betânia) é o paradigma desta angústia cristã. Essas irmãs de Lázaro, despojadas de seu irmão e em angústia se parecem muito com Jó, porque é uma angústia sofrida no amor, tornado homem, na paciência, submissão, em perguntas: é uma derivação imediata da angústia do Cordeiro que não abre a boca enquanto é conduzido ao matadouro. Portanto, a angústia no Novo Testamento é sempre por princípio uma angústia universal, em que os limites do indivíduo são superados e destruídos. A angústia da cruz de Cristo exprime essa universalidade. Uma vez que a essência do cristianismo está no novo mandamento (Jo 15,13; Rm 5,10), segue-se que a angústia cristã só pode ter origem na solicitude pelo próximo, amigo ou inimigo até dar o “salto para Deus” (p.48). Nesse salto para Deus surge a alegria cristã que daí nasce a própria “angústia cristã”. Então, objetivamente a angústia é “um modus da fé, do amor e da esperança, uma fase da sua realização e um processo vital interno” (p.50). Na angústia cristã, a imagem de Deus é velada. Uma primeira lei sobre a angústia cristã (p.51): essa lei indica que há uma oposição entre angústia redentora à angústia do pecado, ou seja, o homem não pode possuir a graça santificante e ao mesmo tempo odiar a Deus. Assim como na Antiga Aliança, na Nova ainda é evidente o medo que o pecador tem de Deus e da condenação divina e a esperança do crente na redenção. Em suma, a angústia vive entre o “temer” e o “esperar”. A fé cristã diante da angústia humana quer, mediante as virtudes teologais, ser um terreno firme para o ser humano caminhar. Sem essas virtudes, a consciência fica má e a angústia atormenta toda sua vida, já que o ser humano deixa de se “medir” por Deus. Não há uma reflexão cristã estática entre a angústia do pecado e da cruz. Muitos, como Jansênio, Lutero, Calvino e Kierkegaard tentaram essa proeza: olhar a redenção como algo finito; disso surge a angústia. A redenção objetiva pode ser tornar subjetiva e para isso precisa de participação e apropriação: de uma angústia de pecado para uma redentora. Portanto, é necessário uma adesão na “angústia de Cristo”.

Uma segunda lei sobre a angústia cristã (p.56): essa lei indica que a angústia do cristão deve ser sempre por participação a de Cristo. Isso ocorre mediante a pura graça mística de Deus; é a “angústia mística” de São João da Cruz. É um verdadeiro abandonar-se a Deus, estar “nu, indefeso diante de Deus” (p. 58). Muitos poetas tratam bem desse tema, tais como: Georges Bernanos, Gertrud Von Le Fort, Paul Claudel. Todos os três poetas reconheceram o lugar espiritual da angústia cristã e colocaram-se nele: na Revolução Francesa, no desmoronamento de toda a antiga ordem do mundo perante o caos da liberdade que se levanta e na disponibilidade para tudo. Isso exige ascese, heroísmo. O cristão pode cooperar e ser solidário na medida em que se liberta do pecado, isto é, angustiar-se com os outros apenas na medida em que foi liberto da angústia do pecado. Na terceira lei, se percebe que Deus não oferece a nenhum crente a participação na angústia da Cruz do seu filho sem lhe ter dado toda a força da missão cristã, sem lhe ter tirado a angústia do pecado.

Capítulo 3: “A essência da angústia” (p. 63 - 87)

Sobre o tema da essência da angústia é fundamental se servir da filosofia, enquanto “reflexão do espírito humano sobre os motivos e as causas deste mundo concreto”, criado por Deus, na graça sobrenatural, com uma única e sobrenatural finalidade que é a contemplação de Deus. Diz Von Balthasar que o “objeto de qualquer filosofia é sempre algo mais do que filosófico” (p. 63), e a natureza que nós conhecemos é a que se move entre o pecado original e a Redenção. Aqui se pretende analisar, à luz da Revelação, a natureza e a razão humanas que pela mesma luz foram atingidas: razão e natureza que são solicitadas pela Revelação a repensarem-se e a compreenderem-se a si mesmas. A razão é autorizada a trazer as suas descobertas e examina-las à luz da palavra de Deus. A razão pode partir da palavra de Deus e levar esta última como expressão da ordem concreta do ser indicado por Deus, para aquela ordem do ser que é acessível ao homem. A partir de Platão, a filosofia considerou como seu ato fundamental a admiração; não era preciso Heidegger para descobrir que este ato fundamental leva próximo à angústia. Tomás de Aquino percebeu que o medo não move à investigação, mas à fuga, sendo, portanto, que a admiração não é uma forma de angústia. Tomás distingue três (3) formas de “angústias”: intensidade, improbabilidade e imprevisibilidade.

A velha filosofia distingue o “medo do mal corruptivo” (que destrói o ser), do “medo do mal contristante” (que se opõe ao apetite do concupiscível); o primeiro ameaça a substância, o segundo a atividade. A ameaça natural por excelência é a morte tanto natural como violenta. Diz Aristóteles: “todos sabem que devem morrer, mas como não é coisa próxima, não se importam com isso”. Santo Tomás diz: “para se ter medo é preciso que subsista uma certa esperança”. A antiga filosofia do medo atinge aqui, os seu limite. Em Santo Tomás, a angústia é uma atitude da alma espiritual, do espírito enquanto finito que vendo os seus limites, ultrapassa-os. Na verdade, “o lugar da angústia no espírito é definido pela relação recíproca entre transcendência e contingência. Transcendência significa que o espírito deve ter ultrapassado todo o existente singular e finito e atingido a perfeição do ser. O ser (...) é aquilo pelo qual o existente existe” (p.68-69). O espírito que quer conhecer um existente deve libertar-se até alcançar esta indiferença do ser; ele tem necessidade de possuir em si um palco vazio; este abismo na transcendência é o motivo da angústia para o espírito conhecedor do existente. O “espírito” (em ato de conhecimento) tem que abandonar o terreno do existente para voltar a ele. O que se interpõe entre o geral e o particular é aviso, para o espírito cognitivo do abismo mais profundo que existe entre o existente e o ser. O ser só é terrível e angustiante na sua relação com o existente. O jovem que desperta para os problemas da abstração e da transcendência sofrerá pela primeira vez a imensa decepção que o mundo causa. A transcendência que se abre na sua frente apresenta-se no princípio como algo sedutor; ela torna possível ao pensamento a dupla direção da “abstractio” (do ser a partir do existente), e da “conversio ad phantasma” (como ver-se na aparência). O “excessus”, o êxtase do pensamento para além do sensível tem já em si o gérmen da angústia. A passagem desta vida, em Deus e com Deus requer, como notou Kierkegaard uma “determinação intermediária”, e, ele a entende como a angústia que está latente no fundo da inocência e ignorância em um estado de calma e repouso, como um “nada”: este nada engendra a “angústia”. “O homem é uma síntese de alma e corpo que se une ao espírito” (p.76). O espírito é uma presença ambivalente na relação entre o corpo e a alma; em outras palavras aqui “estamos no terreno da mais antiga tradição da Igreja, segundo a qual o espírito finito não pode chegar à plena realização do seu destino a não ser por meio de uma escolha e atravessando uma tentação” (p.77). Com Von Balthasar, pode-se concluir que com referência à natureza da angústia, Kierkegaard viu bem o ponto onde ela nasce, mas não analisou suficientemente a natureza da vertigem gerada pelo vazio que se cava dentro da finitude do espírito. O que faz medo ao espírito é o vazio que se abra na região em que a vizinhança de Deus e o seu conhecimento concreto se mudou num afastamento, dando lugar a uma relação abstrata com um “outro”. O anti-divino,a “serpente” distancia o espírito de Deus. A angústia aí em Adão (homem) é imanente ao espírito por causa do vazio que nele se abriu. O “nada” é a ocasião próxima da angústia. A angústia está em cena assim como o vazio, e a redenção de Cristo não suprime este vazio. Traz sim, a plenitude de Deus, mas traz para dentro deste vazio. Do Redentor diz-se que ele se esvaziou, entrando no vazio. O vazio foi preenchido: Deus é presente como plenitude não percebida, como plenitude no vazio. Diante disso, o “ato do cristão (...) é um transcender, pondo a confiança unicamente naquilo que se encontra do outro lado, e de que vem a possibilidade e a força” (p. 80). A atitude não é nada, sem aquilo que torna possível esta atitude Deus presente em Cristo. Pedro, por exemplo, falta-lhe a fé, então afunda-se na “transcendência”, dá esse salto teologal com a ousadia. Enquanto o cristão ousando abandonar tudo, sae da finitude para entrar na infinitude de Deus, Cristo para tornar possível na origem este ato, ousou lançar-se na finitude e no vazio do tempo, renunciando a toda a segurança e facilidade provenientes da sua eternidade. Neste emergir da eternidade para o tempo, o Filho do Homem conheceu a angústia. O crente, abandonando tudo, todo o apoio, para se por sem reservas à disposição da totalidade de Deus, entrega a “Ele” o seu sentir: quem ama, espera e crê, chega a ser indiferente perante a angústia; não se antecipa e tudo espera de Deus. É Deus que dispõe da angústia e da segurança da criatura. Toda angústia é ultrapassada graças às virtudes teologais.

A Igreja ocupa um lugar importante no problema “o cristão e a angústia”; ela exige do homem natural um esforço para a imitação de Jesus Cristo. Ela quer que o homem se aventure a caminhar para além da natureza, e que neste salto ele persevere e viva; para este “salto” há o oferecimento dos ministérios, da Sagrada Escritura, os sacramentos, a tradição, a poderosa estrutura do ano litúrgico, educando o cristão para o grande salto. Uma “teologia dialética” ou uma “psicologia das profundidades” poderiam fazer uma análise das estruturas e carapaças da angústia com que os “homens da Igreja” adotaram no decurso dos milênios; exemplo: querela entre “reino de Deus” e “poder terrestre”. Para ser cristão dentro da Igreja é preciso coragem que é completa como a angústia: “é uma graça e dom de Deus, quando se apodera do homem todo e o inflama, assume e eleva as melhores atitudes do homem” (p. 85). É uma consciência das próprias “possibilidades”; o raio desta possibilidade é proporcional à abertura e ao vazio que existem no espírito que conhece e quer. A mesma coragem torna-se valor cristão quando o plano encontra o seu fim e a sua origem no próprio Deus. Quanto mais desarmado se está, maior é a abertura a Deus e para Ele e mais a sua força aflui e habita no homem. O cristão, assim, aberto, caminha, resplandecente de luz, para afrontar e vencer o mundo fechado na sua couraça; ele não está solitário, mas na Igreja, comunidade dos seus iguais; ela é o rebanho de Cristo e nunca será o “rebanho” NIETZSCHEANO, já que para participar nela há a eleição feita por Deus.

André Boccato
Enviado por André Boccato em 29/07/2011
Código do texto: T3126112