Noites Tropicais – Solos, improvisos e memórias musicais (Nelson Motta)

Existem coisas na vida que jamais aconteceriam se não fosse o abençoado paternalismo. Chico Buarque talvez jamais seria Chico Buarque se não fosse pela influência de Sérgio Buarque de Holanda, seu pai. / Maria Rita não seria Maria Rita sem a sombra da mãe: Elis Regina. / Preta Gil não seria Preta Gil se não fosse Gilberto Gil./ Bebel Gilberto nunca seria Bebel Gilberto sem João Gilberto e sua mãe: Miúcha (irmã de Chico Buarque). / Wilson Simoninha e Max de Castro não seriam nada se não fossem filhos de Wilson Simonal. / Davi Moraes não seria Davi Moraes se não fosse o pai: Moraes Moreira. / Nara Leão não seria Nara se não tivesse um pai extremamente burguês e influente no Rio de Janeiro dos anos de 1950. / Luis Fernando Veríssimo não seria escritor sem as “lições paternais” de Érico Veríssimo. / Nana, Danilo e Dory jamais seriam a talentosa família Caymmi se não fosse o mestre Dorival Caymmi. / E a lista seria bem maior se ainda fôssemos colocar todos os filhos “globais” como: Dado Dolabella JUNIOR, Tarcísio Meira FILHO, Gabriela Duarte FILHA, Sandy e Junior FILHOS, Boninho FILHO, Paloma Duarte NETA e tantos outros “filhos da fama” que dominaram (ou dominam) a cena cultural brasileira. E no caso do autor de Noites Tropicais, Nelson Motta (neto de ministro e filho de pai também extremamente burguês), a história foi a mesma. Para escrever o livro, que traça uma espécie de panorama da música brasileira desde a invenção da Bossa Nova até o boom do rock nacional, o autor jamais teria sido quem foi (testemunha de cenas antológicas) se não fosse pela influência de sua sagrada família.

A história do livro começa em 1957, quando Nelson Motta era um garoto de 13 anos, que mesmo morando no Rio de Janeiro em pleno “anos dourados”, não gostava nem um pouco de Bossa Nova. E se não fosse papai e mamãe terem levado Nelsinho a um show de bossa, ele talvez jamais teria despertado para essa hipnose bossa novista. E só para o leitor ter uma idéia da influência dos pais de Nelsinho: gente do nipe de Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Johnny Alf, Roberto Menescal, Alayde Costa, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes e até João Gilberto eram visitas frequentes na casa de seus pais, e também na de seu avô ministro. Resumindo: Nelsinho tinha o privilégio de ter os próprios discos e livros tocando e conversando ao vivo em sua casa. Mais doce que isso só um melzinho.

Nelsinho teve a sorte, além da convivência com toda essa constelação, a de ter visto a primeira aparição pública de muitos astros da música brasileira. Um dia, no “luxuoso” apartamento do cônsul argentino Oscar Camillion, na Avenida Atlântica, ele assistiu ninguém menos do que Roberto Carlos, quando ainda era um simples desconhecido vindo de Cachoeiro do Itapemerim (ES), em sua estréia no ano de 1960, imitando “escancaradamente” João Gilberto, e levado por Carlos Imperial (que queria transformá-lo em um novo sucesso bossa novista, obviamente que fracassou), isso tudo quando a Jovem Guarda ainda estava muito longe dali. E nesse mesmo ano, Nelsinho foi estudar violão na Rua Dias da Rocha, no coração de Copacabana, onde conheceu Wanda Sá, Maurício Tapajós, Edu Lobo e Marcos Valle, todos jovens e bem criados sob o sol carioca.

Os babulinas

Mas nem só de paternalismos é o livro de Nelsinho, onde ele também fez um resgate da carreira de Tim Maia e Erasmo Carlos, garotos pobres e sem dinheiro da Rua do Matoso, na Tijuca (lugar jamais frequentado por Nelsinho e sua turma). Tim (filho de um vendedor de marmitas) era amigo de Erasmo, e os dois passavam tardes inteiras, sozinhos, sem professores, tentando tocar “Desafinado” e outras músicas interpretadas por João Gilberto, que adoravam. Aos 16 anos, Tim mentiu para o bairro inteiro dizendo que ia morar (através de um programa de intercâmbio) com uma família americana nos EUA. Fez uma campanha para arrecadar fundos, e conseguiu persuadir até o padre da igreja da Tijuca, que acabou completando o valor da passagem.

Quando desembarcou em New York, sem ninguém esperando, foi morar no bairro de Tarryton, onde Tião (seu apelido na Tijuca) virou Tim. E depois de trabalhar como garçom e entregador de pizza, Tim aprendeu inglês, conheceu a música black, “cantou em grupos vocais, fez pequenos furtos e experimentou todos os tipos de drogas. Até ser preso em Daytona Beach", na companhia de três amigos (do movimento black) enquanto fumavam maconha num carro roubado. Passou uma temporada na cadeia e foi deportado para o Brasil. Na volta, de tanto cantar o rock “Bop a lena”, ganhou o apelido de Babulina. Mas esse também era o apelido de outro crioulo atlético chamado Jorge, que morava no Rio Comprido. E antes do primeiro encontro entre os “babulinas”, muita gente pensava que eles iriam entrar em conflito pela paternidade do apelido, mas tudo acabou em música numa session de rock no Beco do Mota, junto com Erasmo (que já havia composto o sucesso “Parei na contramão” com Roberto). E quando ainda estava preso nos EUA, Tim recebeu uma carta de Erasmo contando o sucesso de “Parei na Contramão”, e ele achou que era “cascata” do amigo, mas quando retornou ao Rio, e viu que era tudo verdade, sabia que podia fazer coisa muito melhor. Não demorou muito, (e com uma ajudinha de Elis Regina), estourou em todo país seu primeiro sucesso: "Primavera", seguido por "Azul da cor do mar" e "Padre Cícero". “Poucas fusões musicais foram tão naturais e eficientes como a sua. E poucos tinham como ele a capacidade de fazer dançar, inspirar romances e agradar à alma popular”, escreveu Nelsinho, que também foi um de seus melhores amigos. E quase ao mesmo tempo, o garoto chamado Jorge, também abandonou o apelido babulina, e introduziu um Ben, nascia então Jorge Ben, que já fazia fama com uma mistura “sensacional de samba, rock e maracatu. Não precisava de músicas de ninguém, nem de músicos: sozinho era a banda”.

"O mundo é um moinho"

Em frente ao Litle Club, no Beco das Garrafas, Nelsinho conheceu (muito antes do sucesso internacional) o jovem pianista Sérgio Mendes, acendendo um peido na frente do bar. “Numa roda de papo, ele empinou a bunda, acendeu um isqueiro na linha de tiro e lançou uma chama azulada e fugaz, entre aplausos e gargalhadas”, relembrou o autor, sobre a primeira vez em que viu Sérgio Mendes, que mesmo antes dos vinte anos já liderava bandas com os experientes Edson Machado na bateria e o genial Raul de Souza atirando com seu trombone. E como todo bom burguês, Nelsinho também preservara na juventude uma certa arrogância típica dos “playboys”. Certa vez, Nelsinho estava na praia com os amigos, quando apareceu um rapaz tímido e de olhos verdes, que tocou algumas músicas ao violão. Enciumado, Nelsinho lhe tomou o violão e começou a se exibir para as garotas da roda. Mas, ele nem imaginava que se tratava de Chico Buarque de Holanda, que na época era conhecido apenas

por ser "o amigo paulista do Edu Lobo".

Música de outro mundo

Numa das viagens que fez para São Paulo, Nelsinho assistiu na Baiúca, que era uma espécie de filial paulistana do Beco da Garrafas, um grupo de instrumentistas, todos eles também desconhecidos: o pianista César Camargo Mariano, o baterista recém chegado do Paraná, Airto Moreira e Hermeto Paschoal. “Um albino alagoano que sacava sua flauta e improvisava vertiginosamente”. Juntos (sem paternalismos), os três faziam um som típico dos céus e, mais uma vez, o “cagado” Nelsinho estava lá para conferir.

O gringo e os Filhos de lavadeira

Em 1964, paralelo à “turma do sobrenome”, surgia também a mais nova revelação da música brasileira: Elis Regina, 19, filha de uma lavadeira de Porto Alegre, que se tornou uma das sensações do Beco das Garrafas, junto com Wilson Simonal, 22, filho de outra lavadeira, desta vez carioca. “Simonal tinha um fraseado exuberante, uma ênfase nos ritmos dançantes e uma atitude extrovertida. Simpático e irrevernte, ele não só sabia como poucos sentir e interagir com o público, como estava criando um gênero musical próprio, um estilo, uma batida, uma levada, uma atitude: a pilantragem”.

De acordo com Nelson Motta, a gaúcha Elis Regina, um dos destaques da narrativa (inclusive na descrição de um breve romance com Nelsinho, que culminou na separação da cantora com Ronaldo Bôscoli), teve a sorte de ter sido aluna de outra personagem legendária no Beco das Garrafas, o norte-americano Lennie Dale, ex-artista da Broadway, que morava no Rio e havia se apaixonado pelo Brasil e pela maconha baiana. Dale ensinou “à garota ingênua e provinciana tudo que tinha aprendido no show business americano. Com ele, Elis aprendeu outras divisões rítimicas, outros fraseados e outras maneiras de cantar. Também aprendeu a ensaiar exaustivamente e buscar sempre mais e melhor”, registrou o autor.

Sapateado na 5th e maconha musical

Em uma viagem que fez para New York, Nelsinho teve o privilégio (olha a cagada aí de novo), levado por um magnata amigo de seu pai, de assistir a um show antológico de João Gilberto, com Airto Moreira tocando vassourinha num catálago telefônico. Assim que terminou a apresentação, os três sairam pela Quinta Avenida, onde João, "feliz e animado", chegou a ensaiar alguns passos de sapateado. E nessa mesma viagem, Nelsinho fumou pela primeira vez um baseado de maconha que lhe foi apresentando por um tradutor da ONU e massagista de velhinhas nas horas vagas: Jorge Mautner.

Parceiro fiel da ditadura

E além de descrever suas célebres “cagadas”, Nelsinho é também repetitivo e bastante contraditório em seu livro. Pois antes mesmo de chegar na página 77, o autor sempre usava o mesmo chavão para situar João Gilberto no enredo, e repetiu quatro vezes a frase: “João Gilberto não tinha nada a ver com isso”. Mas, o mais grave, é que Nelsinho critica severamente no livro as rádios e os compositores que em plena ditadura militar tocavam as músicas: “Pra frente Brasil” e “Eu te amo meu Brasil”. E em seguida, ele mesmo fez para a Globo em 1971 (que era completamente alinhada aos generais), a música que até hoje é tema da emissora no natal, feita em parceria com Marcos Valle: “Hoje a festa é sua/ Hoje a festa é nossa é de quem quiser...”. Nesse ponto, concordo com a atriz Dina Sfat, que reprimiu severamente o contraditório autor momentos antes da gravação do jingle: “Como vocês fizeram isso? É uma vergonha! Essa música serve aos objetivos da ditadura com a cumplicidade da Globo!”. Mas, infelizmente, a própria Dina Sfat também contribuiu para a palhaçada.

Panela do diabo

Após escrever sobre o boom da tropicália, liderada por Gil e Caetano, e do sucesso de nomes como Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco e Novos Baianos, Nelsinho também relembra a trajetória meteórica do Secos e Molhados, grupo que durou apenas dois discos, e que terminou por causa de um conflito de egos entre os integrantes, especialmente o português João Ricardo, que era autor da maioria das músicas. “Além da bela e subversiva voz de soprano, Ney Matogrosso exibia nos palcos uma sexualidade agressiva que provocava igualmente homens e mulheres, mas surpreendentemente encantava também as crianças”, relembrou Nelsinho. E outro que também mereceu atenção especial em Noites Tropicais foi Raul Seixas e o parceiro Paulo Coelho, que era um jovem totalmente sem grana e editor de uma revista hippie quando conheceu o futuro rei do rock brasileiro. “Raul era baiano, mas fazia questão de dizer que não era nem dos novos nem dos velhos. Detestava João Gilberto e achava Caetano e Gil uma chatice. Inteligente e irônico, Raul era atrevido e desconfiado, anárquico, engraçado e articulado. Com sua experiência e seu espírito rebelde e inovador, Raul, pós-tropicália, somava tradição ao futuro. E se afirmou como um rebelde independente e libertário, se tornando ao mesmo tempo ídolo popular nas favelas e um admirado ponta-de-lança da contracultura”.

BRock Brasil

Na última parte do livro, Nelsinho relata suas experiências com Lulu Santos e Lobão (que tocavam na mesma banda de rock no ínicio da carreira, a Vímana, onde Lulu era guitarrista e Lobão baterista). Mas, logo depois, Lobão virou baterista de Marina Lima, Luiz Melodia, Gang 90 e do grupo Blitz, de Evandro Mesquita e Fernanda Abreu, até que abandonou de vez o barco para mergulhar em carreira solo. Marisa Monte (por quem Nelsinho estava apaixonado, mas ela preferiu ficar com Nasi, vocalista do Ira), mereceu um capítulo especial no livro, onde o autor relembrou desde o ínicio de sua carreira como cantora lírica até o estrelato mundial. Os Paralamas do Sucesso, a Legião Urbana, o Barão Vermelho e os Titãs, também foram abordados no livro, que termina com uma crítica à onda sertaneja que tomou conta do país nos anos 1990. Por fim, paternalismos à parte, Noites Tropicais vale a pena somente pelo registro musical das “cagadas mais célebres” de Nelsinho (que mesmo às vezes puxando a sardinha pro seu lado) conseguiu fazer um livro revelador sobre os bastidores da música brasileira nos últimos trinta anos. E tudo isso graças à santíssima trindade da sagrada família!

Kami Otai - Nagoya /17 de janeiro de 2007/ quarta/ 21h21

Danilo Nuha
Enviado por Danilo Nuha em 17/01/2007
Reeditado em 12/02/2007
Código do texto: T349725