STEPHEN HAWKING E O GRANDE PROJETO: UMA LEITURA INTERDICIPLINAR

Um intelecto que em umcerto momento pudesse conhecer todas as forças que estabelecem a natureza em movimento, e todas as posições de todos os temas que essa natureza compõe, se esse intelecto fosse também tão suficiente para apresentar esses dados em uma análise, que pudesse unir em uma simples fórmula os movimentos dos grandes corpos do universo e o muito pequeno do átomo; para esse tipo de intelecto nada será incerto e o futuro como o passado seria o presente para esses olhos

— Essai philosophique sur les probabilités, introdução. 1814

O GRANDE PROJETO de Stephen Hawking e Leonard Mlodinow é um interessante trabalho de divulgação científica cujo grande tema são as questões últimas da própria condição humana, como por exemplo, “porque existimos”, “O que é o universo, a natureza e a própria realidade como a conhecemos”.

Cabe esclarecer preliminarmente que o “grande projeto” ao qual os autores se referem é uma imagem legada pela física teórica do sec. XX : a possibilidade de uma “teoria de tudo”, ou seja, a hipotética Teoria da Grande Unificação, da reunião em uma única estrutura teórica da teoria da relatividade e da mecânica quântica ou, em termos bem simples, da “macro” e da “micro física” como proposto na epígrafe desta resenha.

Desviando-me, entretanto, da imagem central do livro, principalmente por ser um leigo no assunto, julgo pertinente chamar atenção para algumas peculiaridades de sua narrativa e implicações multidisciplinares.

Pertinente neste sentido observar que na obra em referência as grandes formulações do saber científico confundem-se com os grandes temas da tradição filosófica ocidental em um tempo em que, segundo seus autores, a filosofia está morta, pois “ não acompanhou os desenvolvimentos modernos da ciência, em particular da física. Os cientistas passaram a portar a tocha da descoberta em nossa busca do conhecimento.”

Justamente por isso, seu principal fundamento teórico e, vale sublinhar, seu ponto forte, é o conceito de “determinismo cientifico” paulatinamente formulado pela ciência moderna através da revolução cientifica dos secs. XVI-XVIII que, desconstruindo a tradição aristotélica e escolástica, deriva as leis naturais da observação criteriosa da natureza e não de premissas logicas inspiradas por uma “racionalidade abstrata”. Tal paradigma cientifico conduziu no século XX a uma radical ruptura epistemológica ao, através da teoria da relatividade e, principalmente, da teoria quântica, por em xeque a premissa elementar da objetividade do real, estabelecendo a possibilidade de diversos “quadros de realidade”, formulação que conduz os autores a conclusão de que “Não há conceito da realidade independente de um quadro ou de uma teoria”.

As implicações desta formulação que sustenta a narrativa para o amplo cenário da ciência e do conhecimento contemporâneo encontram-se resumidas na seguinte passagem :

“Na época em que primeiro se propôs o determinismo científico, as únicas leis conhecidas eram as leis newtonianas do movimento e da gravitação. Descreveremos como essas leis foram entendidas por Einstein em sua teoria da gravidade geral, e como outras leis foram descobertas, governando outros aspectos do universo.

As leis naturais nos dizem como o universo se comporta, mas elas não respondem às questões colocadas no inicio deste livro:

Por que há algo em vez de nada?

Por que existimos?

Por que este conjunto particular de leis e não outro?

Alguns poderiam assegurar que a resposta a estas questões é que há um Deus que escolheu criar o universo desse modo. É razoável se perguntar quem ou o que criou o universo, mas se a resposta é Deus, então a questão é apenas deslocada para quem ou o que criou Deus. Segundo esse ponto de vista, concebe-se a existência de alguma entidade que não necessita de criador, e essa entidade é chamada de Deus. Esse é o conhecido argumento da primeira causa em favor da existência de Deus. Sustentamos, contudo, que é possível responder a essas questões inteiramente dentro do reino da ciência, sem apelar para quaisquer seres divinos.

De acordo com o realismo dependente do modelo, introduzido no capitulo 3, nossos cérebros interpretam as informações vindas de nossos órgãos sensoriais construindo um modelo do mundo exterior. Formamos conceitos mentais de nossa casa, das arvores, de outras pessoas, da eletricidade que sai das tomadas, dos átomos, das moléculas e de outros universos. Esses conceitos mentais constituem a única realidade que conhecemos. Não há teste da realidade independente do modelo. Daí decorre que um modelo bem construído cria sua própria realidade.” ( p. 126)

Os autores definem aqui uma “resposta cientifica” a certas questões filosóficas despindo-as de suas roupagens “metafisicas” e conduzindo a narrativa cientifica a um patamar que transcende seu próprio campo em um esforço interdisciplinar no mínimo muito interessante. Creio que essa é a maior contribuição da obra aqui comentada enquanto esforço de divulgação de descobertas cientificas consagrada a um público mais amplo do que dos especialistas. Seu questionamento radical da teologia, que gerou certa polêmica por ocasião do lançamento do livro, parece-me exagerada. Afinal, o que há de estranho em uma formulação cientifica excluir qualquer “dialogo” com fundamentos teológicos?