Ensaio sobre a cegueira

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Ensaio sobre a Cegueira

A obra Ensaio sobre a cegueira de Saramago, segundo o próprio autor, nasceu em setembro de 1991 a partir da experiência do deslocamento da retina enquanto almoçava no restaurante de Varina da Madragoa, mas as circunstâncias em que a idéia surgiu levaram-no a pensar que seria longínqua qualquer relação de causa efeito. Estava ele a almoçar, esperava que o servissem, e, como sempre pensava em coisas vagas. De repente surgiu-lhe o título “Ensaio sobre a cegueira”.

Todo processo criativo de Saramago foi mundialmente reconhecido quando da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, ganho por ele em 1998.

O livro ensaio sobre a cegueira de Saramago é uma obra forte, que leva o leitor a refletir sobre o que realmente somos. O que enxergamos? Vemos o outro em algum momento ou somente a nós mesmos? Como vivemos? O que realmente é importante na vida: dinheiro? Posição social ou o auto-conhecimento e equilíbrio de sentimentos?

A obra faz o leitor pensar o que faria no lugar dos personagens, a qual deles se assemelharia: A covardia do ladrão de carros? A sensibilidade da rapariga dos óculos escuros? A fragilidade do menino estrábico? A sabedoria do velho da venda preta? Ou seria a coragem e determinação da mulher do médico, única a enxergar? Ao equilíbrio do médico? A maldade dos cegos da outra ala do manicômio? Seria o leitor cego animal irracional ou um ser pensante buscando uma saída para este caos de cegueira?

São muitos os questionamentos que a obra faz. É impossível ler ensaio sobre a cegueira e não se imaginar em um desses personagens sem nomes, perdidos envoltos em um mundo de destruição, abandono, desesperança.

O livro inicia com uma fatalidade: de repente, meio do trânsito, um homem fica cego e entra em desespero. Os que o cercam não compreendem a princípio o que se passa e tomados pela curiosidade sempre aguçada na maioria dos seres humanos, se aproximam para ver o que está acontecendo. Uns como donos da verdade vão dizendo como devem proceder, outros olham e seguem adiante indiferentes e o ladrão de carros se oferece para ajudá-lo.

O motorista vai parar com sua esposa no consultório de um oftalmologista, o médico, onde encontrava-se a maioria dos principais personagens desta história: o médico, a secretária, a rapariga dos óculos escuros, o garotinho estrábico, o velho da venda preta...o autor criou um ambiente de ligação entre os personagens, visto que outra personagem tida como a mais forte do livro, que é a mulher do médico, está diretamente ligada a esse ambiente.

Após ser atendido pelo médico, em primeiro lugar, visto que se tratava de uma urgência, mesmo contrariando os que ali havia chegado primeiro e protestavam. O motorista foi levado de volta pra casa, pois não havia sido constatada nenhuma deficiência visual pelo médio, o que o intrigou e o fez procurar um amigo, também médico, e partilhar do acontecido e em seguida consultar os livros a espera de encontrar uma explicação para aquela cegueira repentina foi quando também cegou. O mesmo aconteceu com todos os personagens que se encontraram no consultório do médico: um a um foi cegando ao retornarem ao cotidiano de suas vidas.

O Governo junto ao Ministério da Saúde decidem que a solução para o problema é o isolamento, temendo que a epidemia se espalhasse e pusesse a população em pânico, e decidiu por conduzirem todos os cegos ao manicômio o que não resolveu, pois a “treva branca” atingiu a todos. A partir daí a história se dar, dura, cruel, aonde uma epidemia de cegueira branca vai tomando de conta das pessoas.

O Romance de Saramago se diferencia da maioria das obras em vários aspectos, um deles é o enredo forte, assustador, trazido já nas primeiras páginas onde o motorista fica cego de repente em meio ao trânsito. Daí por diante o autor vai narrando a sua história sobre a “cegueira branca” um outro fator interessante visto que toda cegueira até esta obra era negra.

Ensaio sobre a cegueira retrata de forma assustadora uma realidade de crueldade, violência, indiferença onde a luta pela sobrevivência se contrapõe a qualquer gesto de humanidade.

Dessa forma, a história leva o leitor a imaginar-se cego, a desesperar-se por não saber como lidar com essa situação nova que se apresenta de repente, sem prévia para preparação, a princípio sem saída, alguns sozinhos, perdidos dos parentes, da família até se encontrarem com outros em situação semelhante e daí partilharem do mesmo desespero. Outros personagens, como o médico e a mulher tiveram a sorte, pelo amor dela, de estarem juntos todo o tempo em que durou a cegueira branca.

No mesmo sentido, a obra mostra a necessidade de humanização dos cegos confinados, quando se vêem trancafiados em quarentena, completamente isolados do mundo exterior, salvo as ordens que recebiam do auto falante e as notícias que o rádio do velho da fenda preta trazia enquanto as pilhas não se esgotassem. A necessidade de ouvir a música como entretenimento para a rapariga dos óculos escuros.

O reencontro do motorista com a sua mulher revela a cumplicidade deste casal que se completa; a proteção da rapariga dos óculos escuros com o garoto estrábico que chamava pela sua mãe; o amor da mulher do médico quando resolveu fingir-se cega e acompanhá-lo; a sabedoria do velho da fenda preta e a sua atração pela rapariga dos óculos escuros, que embora anos mais nova do que ele e bela, correspondeu a esse sentimento e terminaram por ficarem juntos.

Os momentos de solidão e desespero vividos por todos e apaziguados por alguns diante uma palavra de carinho, consolo, um simples toque de mãos demonstrando que os sentimentos não cegaram. E ainda a coragem e determinação da mulher do médico, única a enxergar que não se acomodou ao abandono e organizava os cegos na luta pela sobrevivência, mesmo alguns se acovardado, por medo de enfrentar as adversidades as quais lhes eram submetidos naquela treva branca.

Por outro lado, o autor mostra que mesmo diante de uma situação de penúria como o mar de cegueira em que vivem os personagens, os sentimentos, desejos e instintos não se esvairiam, pelo contrário, se tornam presentes e muitos deles sem razão de ser ou sem uma explicação plausível.

Nesse sentido, a mulher do médico vivenciou uma experiência sofrível ao ver seu marido cego se adentrar embaixo dos lençóis da rapariga dos óculos escuros.

assim estava quando viu o marido levantar-se e, de olhos fixos, como um sonâmbulo, dirigir-se à cama da rapariga dos óculos escuros. Não fez um gesto para o deter. De pé, sem se mexer, viu como ele levantava as cobertas e depois se deitava ao lado dela, como a rapariga despertou e o recebeu sem protesto, como as duas bocas se buscaram e encontraram, e depois o que tinha de ser sucedeu, o prazer de um, o prazer do outro, o prazer de ambos os murmúrios abafados, ela disse, ó senhor doutor, e estas palavras podiam ter sido ridículas e não o foram, ele disse, desculpa, não sei o que me deu, de fato tinham razão, como poderíamos nós, que apenas vemos, saber o que nem ele sabe (p.171).

Não era na rua, num motel qualquer, era ali, na sua frente e o que deveria ser ela a última, a saber, foi a única a ver. Que ironia. Estava implícito o ato de traição, a infidelidade. Afinal, o que leva uma pessoa a trair? Ali naquele momento teria o médico uma explicação para sua esposa ou para si mesmo? E a rapariga dos óculos escuros porque não recusou sendo ela amiga da mulher do médico? O que é o sexo afinal de contas? Porque a rapariga dos óculos escuros não se deixou envolver pelo ladrão de automóveis que era descomprometido e o repeliu com um chute que ocasionou a sua morte? E ainda porque ela tão jovem e bonita num outro dia foi deitar-se com o velho da fenda preta que a recebeu como chuva de verão? E a mulher do médico como pôde perdoar a rapariga dos óculos escuros e o seu marido? Tem coisas na vida para as quais não se tem explicação. Elas apenas acontecem.

Ensaio sobre a cegueira também leva o leitor a refletir sobre de que realmente o ser humano (mesmo sendo de boa índole) é capaz diante de uma situação de violência, humilhação, risco de morte.

Até que ponto o ser humano suporta ser escravizado, menosprezado, violentado sem se defender? Submetendo-se as mais cruéis formas de violência como a que era praticada pelos cegos da outra ala comandados pelo chefe armado, que os impunha as piores humilhações em troca da comida que a eles também era destinada. Deixaram-se dominar pelo medo ou pela fraqueza e covardia? Um cego por ter em mãos uma arma poderia dominar dezenas de cegos desarmados?

A mulher do médico não suportou ser violentada e humilhada optou por livrar-se do agressor, mesmo que para isso tivesse de usar de violência. Devagar, a mulher do médico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. Nesse momento, o último, o cego pareceu dar por uma presença, mas o orgasmo retira-o do mundo das sensações comuns, privara-o de reflexos, não chegarás a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as cartilagens e os tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais (p.185).

Estava morto, livraram-se daquele domínio, embora outros pudessem surgir. E a partir daí gerou-se uma nova situação: agora estavam no comando até perceberem que estavam livres de uma prisão menor, as portas abriram-se para a maior de todas as prisões que pudessem imaginar. Presos na cegueira da liberdade.

Com a epidemia de cegueira a ordem social é quebrada, o mundo está organizado para quem vê, não está preparado para lidar com uma situação tão inusitada. O caos é instalado. Regras são quebradas, os mais fortes abusam do poder, a luta pela sobrevivência vai tomando conta de todos.

Porém, em meio a todo esse mar de cegueira está a mulher do médico, que continua a enxergar (mesmo sem saber por que) e pela ótica dela também se reflete o outro lado desta tragédia: como viver a enxergar num mundo de cegos? A ela foi dado o maior de todos os desafios: olhar e ver as mais fadadas barbáries que possam existir no ser humano quando lhe é tirado a visão e enfrentar a todos para sobreviver junto com o seu marido, o médico, e os amigos que conheceu no manicômio.

Um outro fator importante abordado por Saramago na sua obra foi o fato de as autoridades, por não estarem preparadas para lidar com a epidemia de cegueira que assolava o lugar, ao invés de buscarem estudar uma solução, simplesmente resolveram enclausurarem os cegos num abrigo para loucos sem as mínimas condições de higiene e dignidade. Infelizmente a obra não é de todo ficção.

Saramago não usa marcadores temporais, não se sabe em que tempo a história se passa e não há necessidade de saber a cegueira não tem tempo marcado, pode acontecer a qualquer momento e qualquer um pode estar sujeito a ela. Os seus personagens não têm nomes, são identificados pelos traços físicos, adereços, profissão, parentesco.

O romance Ensaio sobre a Cegueira tem uma linguagem de fácil entendimento, porém a ausência de parágrafos e divisão em capítulos, o uso de muitas vírgulas e poucos pontos torna a leitura um pouco cansativa, exaustiva às vezes, mas intensa, instigante. Um romance tocante, forte, contundente. Uma cegueira coletiva, um mundo que retrata as contradições da espécie humana. Os cegos, desorganizados, fadados ao esquecimento, são largados a toda sorte de violência e degradação e ao final, mesmo livres do confinamento tornaram-se prisioneiros de si próprios alienados a um sistema que não havia mais, pois todos tinham cegado.

E quando finalmente recuperaram, alguns a visão não conseguiram enxergar completamente, viviam uma cegueira funcional, sem perspectiva de vida. Assim observou a mulher do médico ao analisar o comportamento de uns com os outros e chegou a conclusão de que as pessoas tornam-se realmente quem elas são a partir do momento em que não podem julgar pelo que vêem.

A obra Ensaio sobre a Cegueira está indicada ao meu entender para toda e qualquer pessoa que deseja olhar e ver o outro e a descobrir-se e melhorar enquanto ser humano.

A impressão que a obra deixou para mim foi a de que valores como solidariedade e respeito ao próximo devem ser cultivados e a de que precisamos olhar e ver o outro a partir de nós mesmos ou ficaremos fadados a fazer de conta que enxergamos. E ainda que para mudar a realidade de egoísmo e indiferença que se instala na sociedade é preciso fazer a diferença como fez a mulher do médico e essa mudança só acontece quando nos dispomos a começar. Acredito que este livro contribuiu muito para essa reflexão.

Saramago, com a sua obra chama o leitor a refletir sobre o ser humano, que não é tão humano assim, quando colocado em situações de extrema violência. É preciso que se tenha coragem para reconhecer isso, descobrir-se e suscitar valores essenciais como respeito ao próximo, coragem, determinação, iniciativa, organização e tomada de consciência enquanto cidadão para a garantia de uma vida digna, solidária, livre da alienação e da indiferença que se agigantam nas sociedades.

Angela Santana
Enviado por Angela Santana em 05/03/2012
Código do texto: T3537534
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