Desonra

Terminei de ler ‘Desonra’ ontem. Não sei nada sobre o seu autor, Coetzee, exceto que ele é da África do Sul e que ganhou o Prêmio Nobel. Mas enquanto eu lia este forte livro ficava me perguntando o quanto ele é autobiográfico, o quanto tratava de sentimentos ou até de práticas que Coetzee de fato viveu. O protagonista do livro é um professor universitário, David Laurie. Ele vive uma rotina bem banal da qual sai logo nas primeiras páginas. David Laurie é expulso (ou sai por decisão própria) de seu mundo seguro e confortável e se abre para outra vida, para diversas experiências que seu país tem a oferecer. Colocado assim parece emocionante (e de fato é). Parece instigante (e de fato é). Parece bom (ichi . . . de algum modo deve até ser).

Ao pensar em escrever me dá vontade de falar logo do seu envolvimento com uma aluna, de falar que a volúpia o abraçou a ponto de fazer coisas anti éticas. Afinal foi este evento é o primeiro que o leva a ser expulso da faculdade onde leciona. Mas acho que a história começa um pouco antes, quer dizer, acho que a fagulha de desejo de viver (que no livro se confunde com o tesão conjugal) nasce no seu relacionamento com a prostituta. Laurie em um dado momento vê a moça com quem tem programa uma vez por semana no supermercado e a procura em um ambiente não profissional. Ao invés de vê-la em um motel devidamente agendado em uma agência de prostituição Laurie a procura ligando em sua casa. Isto mostra que Laurie estava em busca de algo mais, obviamente mais do que a moça tinha a oferecer. Imagina, ela é uma suburbana mulçumana que (a não ser pelo “bico”) levava uma vida respeitável. Imagina se o marido descobre que a esposa é uma puta?! Percebendo o risco que o envolvimento com o cliente traz a moça deixa de fazer os programas com David Laurie. Isto tudo leva apenas algumas páginas do livro mas disto se antevê muito do que o livro traz: O desejo sexual e uma África além da África ocidentalizada em que vive um professor universitário.

O livro tem vários eventos interessantíssimos. Provavelmente alguns bem mais instigantes do que este que trato no parágrafo anterior. Mas estou voltando a escrever agora após anos parado. Época em que não escrevi roteiros, poesias, crônicas, resenhas . . . Então tenho certeza de que escrever minuciosamente sobre o que o livro oferece é uma tarefa árdua demais para mim agora. Ao invés farei uma pequena sinopse e falarei do capítulo que mais me impressionou e que me dá uma grande vontade de filmá-lo, o capítulo 19.

David Laurie é um professor universitário que é pego em um caso com uma menina de dezenove anos, sua aluna, em um caso amoroso. O ato não chega a ser ilegal (a menina é de maior) mas é bem antiético. A universidade faz um julgamento e quem faz as vezes do juiz é o professor de teologia. Vejam só, o envolvimento com uma aluna é errado. A posição de professor (com os holofotes virados para ele em cada aula) é sedutora por si só, mas, sobretudo, é uma posição poderosa. Tem o poder de atribuir notas, de dar ou tirar presenças, de aprovar ou reprovar os alunos. Isto tudo torna o relacionamento um grande pecado. Mas um pecado – como tantos outros – desfrutado eventualmente. Os professores, especialmente os homens, se solidarizam com ele. A própria faculdade sofreria se em todos os casos entre professores e alunos levassem à consequências graves. De modo que o tribunal se inclinava a não dar pena alguma (ou apenas uma pena branda) a David Laurie. A única coisa que exigia é que este demonstrasse um arrependimento profundo, algo que partisse de sua alma. Ou, ao menos, que David fingisse tal arrependimento.

David admite ter feito algo errado. Porém tratar o que fez como um pecado, ver tal experiência sob o ângulo religioso, é algo que ofende David Laurie. Além de que admitir um arrependimento vindo do âmago do seu ser seria uma mentira, um teatrinho. Davi Laurie acaba – mais pelo seu comportamento no tribunal do que pela falta em si – expulso da faculdade. A partir disto perde seu salário, sua aposentaria e todos os benefícios inerentes ao cargo. Como isto deve chocar os concurseiros da minha querida Brasília! Frustrando a expectativa da família da garota, do juiz (professor de teologia), das feministas, dos colegas, da ex esposa (sua melhor amiga) David não pede desculpas. O que nos leva aocapítulo 19, meu favorito.

David Laurie se refugia, vai morar com a filha em um pequeno sítio. Lá tem experiências que nunca teria em sua vida pregressa. Seja porque era acomodado demais para sair dela, seja porque estava em um ambiente mais seguro, mais familiar, estava em águas que sabia navegar. Para quem leu o livro: Me refiro primeiro à experiência como voluntário na clinica e segundo à violência pela qual ele e a filha passaram. Estes momentos são muito importantes no livro, mas para esta resenha as menciono apenas para dizer que já se passou um bom tempo desde o episódio com a aluna e ele viveu muita coisa.

Em um momento tenso com a filha (tensão que se sustenta até o fim do livro) David vai até a cidade onde vivem os familiares da menina com quem tem o caso. Vai até a casa da menina, toca a campainha. Quem atende é a irmã mais nova e ainda mais bela da estudante. David pergunta pelo pai. A bela ninfeta diz que o pai está na escola e deve chegar logo e o convida a entrar. É impossível deixar de lembrar o sexo que teve com a irmã mais velha, pensamento que logo leva a pensamentos sensuais com a irmã mais nova. David pergunta à menina onde o pai está lecionando, em seguida corre para ver se consegue alcança-lo enquanto ainda está na escola. O encontro de David com o pai é incrível:

Se encontram na sala onde o pai está passando a limpo as presenças. O pai se espanta um pouco. David pede para conversarem, o pai aceita. David começa a se explica ao pai. Se explica de um modo impossível quando do julgamento. Fala da volúpia que o tomou, em como a filha o provocava, descreveu ligeiramente a filha. O pai – pessoa extremamente reta e religiosa – se incomodou com a fala direta de David. Mesmo assim, por incrível que pareça o pai chama David Laurie para jantar na sua casa no dia seguinte, junto a sua mulher e a sua filha mais nova.

A família recebe David com o melhor jantar que poderiam oferecer a um convidado. O recebem bem, mas é muito desconfortável pois toda a tentativa de conversa de David é infrutífera. Talvez a esposa e a filha não se sentissem à vontade com alguém que causou mal a alguém de sua família e que foi responsável pela maior ofensa moral que já viveram. Talvez eles fossem apenas diferentes mesmo. Ao cabo do jantar as mulheres se recolhem e Davi conversa com o pai da aluna com quem teve o romance. Novamente começa a falar na menina, no seu caso de volúpia, na calor que lhe trouxe tanta vida. E, por fim, desculpou-se. Era isso. Ponto. Era isto que o pai sabia que trouxe David Laurie. Ele veio para se desculpar. Não se desculpou ou mostrou arrependimento quando foi compelido a isto. Quando seu emprego dependia disto. Mas se desculpou muito depois, livremente. O pai sabia que David veio para se desculpar e o almoço foi a oportunidade deste acontecimento. Achei isto muito bonito. Achei a atitude do pai muito bonita, como também o achei sensível.

“....Quanto a Deus, eu não acredito em Deus, de forma que vou ter que traduzir ‘Deus’ e ‘vontade de Deus’ para os meus próprios termos. Nos meus termos estou sendo castigado pelo que aconteceu a mim. Caí em um estado de desgraça do qual não será fácil me levantar. Não é um castigo que eu recuse. Não reclamo dele. Ao contrário, estou vivendo o castigo dia a dia, tentando aceitar a desgraça como meu estado de ser. Será que basta para Deus, o senhor acha, eu viver em desgraça para sempre?”

“Não sei, senhor Laurie. Normalmente eu diria que não perguntasse para mim, perguntasse para Deus. Mas como o senhor não reza não tem como perguntar a Deus. Então, Deus vai ter que dar um jeito de fazer o senhor entender. Por que acha que está aqui, senhor Laurie?”.