Resenha: A Metamorfose - Frans Kafka

Retrato social

Os traiçoeiros labirintos da solidão humana em sua plenitude são temática amplamente estudada e discutida há séculos, sobretudo na filosofia, psicologia e, também, literatura. As formas distintas de atingi-la, suas manifestações diferentes e as conseqüências que acarretam são inenarráveis. A superficialidade das relações sociais, intensificada pelo capitalismo selvagem e por um sistema em que se vale o que contribui, é um ponto pertinente no assunto. Dedicou-se a árdua tarefa de discorrer a respeito, há exatamente um século, o tcheco Franz Kafka, em sua obra ‘A Metamorfose’, aclamada mundialmente, em que relata, numa riqueza por vezes excessiva de detalhes os infortúnios que permeiam o drama de Gregório Samsa, um caixeiro-viajante que, da noite para o dia, vê-se metamorfoseado num grande e asqueroso inseto.

Kafka dá início a narrativa surpreendendo-nos, de pronto, com a hedionda e brusca transformação. Transtornado, – quando depois da negação, caiu em si - Gregório não sabia o que fazer; não podia faltar do trabalho. Levava uma vida exclusivamente laboral, sustentando os pais e a irmã. Durante todo o tempo em que permanecera no emprego, não faltara uma só vez, portanto teria de apresentar uma justificativa muito convincente se quisesse privar o mundo de deparar-se com sua forma, agora, atemorizante. Logo os pais batem à porta, depois a irmã, lembrando-o de que precisava trabalhar. Diante da insistência, Gregório luta fervorosamente para controlar a nova anatomia, inicialmente mexendo-se de modo desgovernado numa tentativa fracassada de levantar-se da cama. Aqui pensa na ajuda dos familiares mas detém-se por não querem partilhar da infelicidade; entretanto, um aparente sentimento de vingança fria e surda vem à tona pela simples possibilidade da inversão de papeis: agora, ele é quem precisava ser cuidado.

Visto que já se passava do horário de abertura do escritório, o chefe vai pessoalmente até sua casa sondar o motivo da ausência. Os pais, ansiosos e até então inconscientes da situação do filho, não sabem como justificá-la. A mãe, já desnorteada, ordena à filha Grete que buscasse um médico para examiná-lo, para o caso de estar doente. Cabe aqui esclarecer que não se tratava de uma preocupação materna com o bem-estar do filho por amor a ele, mas por temer sua invalidez para o trabalho, a curto ou longo prazo. Gregório, quase intimado a sair ou deixar que entrassem, murmurava coisas que lhes parecia ininteligíveis e, num esforço literalmente sobre-humano, consegue abrir a porta e mostra-se ao mundo, então limitado aos pais e ao chefe. Estarrecidos, assistem impotentes a fuga desesperado do chefe do escritório, salvo o parecer emocionado de Gregório, explicando o motivo da ausência e numa súplica mascarada pela discrição. Frente a situação, tenta se levantar e fica preso na porta, enrascada da qual é salvo por um empurrão agressivo do pai, que resulta em uma generosa poça de sangue.

Passaram a alimentá-lo regularmente, duas vezes por dia, em utensílios exclusivos. Há um episódio em que cita receber alimentos em estado dubitável de conservação, rejeitados por ele mesmo dias anteriores, situação que remete o leitor ao animal que se tornara perante a família. Nos primeiros dias, Grete tinha o afeto de observar de ele gostava ou não da comida, tecendo comentários com os pais. Com o passar do tempo, empurrava a tigela descompromissadamente com o pé para dentro do quarto, e nem se importavam com a freqüência com que a recolhia intacta. A irmã fazia questão de alimentá-lo, e exigia exclusividade na tarefa. Os pais, que nunca tiveram uma relação muito próspera com Gregório, nem protestavam.

Tornara-se um estorvo, vergonhoso, inútil e desprezível. Prova disso é quando a faxineira implora pela demissão, agradecendo imensamente seu consentimento e prometendo, ainda que não demandada, o eterno sigilo sobre o acontecido. A casa estava sem vida, quase nada se comia ou bebia. A estrutura familiar se desfizeram, e a mãe tinha recorre Um desafio inédito permeava seus pensamentos: teriam de trabalhar. Vendo toda a situação que causara, Gregório tem, aparentemente, pensamentos de suicídio, arrastando a cadeira do quarto até a janela. Ao menor sinal disto, a irmã deixava a cadeira na justa posição com a janela aberta, como em concordância aos seus planos suicidas.

Certo dia, num episódio lúgubre da narrativa, o pai tenta matá-lo atirando maçãs e acerta o dorso, acarretando um ferimento que o priva de boa parte de seus movimentos já limitados. Para auxiliar nas despesas, alugam os cômodos para três hospedes, e mantém Gregório secretamente enclausurado em seu quarto que passara a depósito. Num momento de desespero, revela-se aos inquilinos que reagem ameaçando deixar a residência.

Exausta, Grete sugere livrar-se do inseto, que já não se tratava do irmão. Expulsam os hospedes e encontram Gregório morto no chão do quarto, de onde é varrido como a um cão sarnento.

Com a morte do filho, a felicidade e harmonia volta a reinar na casa. A apatia do pai dá lugar à atividade, cessam as crises asmáticas da mãe e a filha descobre-se uma moça linda. De súbito, parecia-lhes que todos os seus sonhos virariam realidade.

O desfecho convida o leitor a um intenso período de reflexão sobre a obra, agressiva, mordaz e um verdadeiro resgate dos princípios morais, minuciosamente desenvolvida com um possível intuito de levar à reflexão. De contemporaneidade indiscutível, define as fraquezas sociais de forma metaforicamente brilhante.

Júlia Marssola
Enviado por Júlia Marssola em 04/10/2012
Código do texto: T3915980
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