Para criar passarinho




     Sabe um livro que a gente lê e relê e parece  sempre a primeira vez? Que a gente lê e relê  para alimentar o coração e a alma de beleza? Que a gente lê e relê por absoluta necessidade e certeza de encantamento?
     Sabe um livro que a gente lê e relê  e quer partilhar com quem convive e ama porque, como bem disse o autor em várias entrevistas, a beleza precisa ser partilhada, dividida com alguém? Nesta edição, merece a partilha não só por causa da escrita mágica de Bartolomeu Campos de Queirós, mas também pelas ilustrações enigmáticas de Guto Lacaz, no colorido de cada página.
    Para criar passarinho é um livro assim. Uma reflexão sobre a liberdade e seu oposto: as prisões em que encarceramos nossa alma  e nosso coração. É um livro- poema que a gente lê e suspira a cada página, pois não cabe dentro  nós a beleza que transborda em cada frase.
    Para criar passarinho é a grande metáfora da delicadeza, da alma poética que devemos cultivar, da condição de sonhar e lutar por cada sonho, da necessidade de compreender e alimentar o “pássaro alma” que todos temos com a liberdade conquistada em cada gesto, em cada movimento do ser. Como não recomendar a leitura de algo assim?
     Permita-se o encanto desse voo!
 

Para criar passarinho

        Bartolomeu Campos de Queirós
 

Para bem criar passarinhos é bom ter asas na alma, imensa inveja dos voos e viver leve com as penas. Isso se consegue descobrindo a alegria de possuir um céu aberto como casa e ter como caminho a distância do nascente ao crepúsculo, sempre.
Para bem criar passarinho é necessário ter o corpo capaz de escutar o silêncio das pedras, o som do vento nas folhas, o ruído de soluços preso em garganta. Isso se alcança afinando bem os sentidos, para perceber sopros de flauta, cordas de harpa e murmúrios das perguntas e lembranças.
Para bem criar passarinho há que se sonhar borboleta, anjo ou estrela cadente, é importante ter imensas intimidades com o nada, admirar o vazio e um especial encantamento pelo azul que existe muito depois das nuvens, infinito adentro.
Para bem criar Passarinho há que se gostar da noite como um tempo para dormir aninhado entre as estrelas. Isso se consegue não suspeitando dos sonhos e fascinar-se com a temporária presença de lua. Ter o escuro como manto capaz de abrigar o sono e mais uma paciente certeza de um sol depois de toda madrugada.
Para bem criar passarinho é proveitoso ignorar as grades, as prisões, as teias. É bom se desfazer das paredes, cercas, muros e soltar-se, deixar-se vagar entre perfume e brisa. É melhor ainda não dispor de trilhas ou veredas e ter o ar inteiro como um espaço pequeno para a ligeireza das asas.
Para bem criar passarinho é bom construir uma gaiola, mais ampla que a terra, de janelas abertas para o universo com seus planetas e constelações. E, depois, há que vigiar o sabor das frutas maduras nas arvores e provar do conteúdo das sementes.
Para bem criar passarinho é indispensável apreciar numa capela sons de sino para travar diálogo com os trinados. É bem preciso ter uma praça diante da igreja, com fios para os pássaros virgularem as pautas. Assim, as aves se fazem de música e descansam, sob penas, para renovadas revoadas.
Para bem criar passarinho há que deixá-los soltos para escolherem e esconderem seus ninhos entre árvores, varandas e telhados. É bom reparar, sem ansiedade, com distância, as suas pérolas postas em conchas de gravetos encarando o azul, debaixo de árvores e sombras de renda.
Para bem criar passarinho é conveniente amar as quedas de cachoeiras, as águas evoluindo nos rios e barulhos de chuva sobre as telhas, imitando grãos em peneira. Isso se faz possível se houver liberdade para as buscas, tempo para a solidão e saudades mansas de outros lugares ainda por conhecer.
Para bem criar passarinho é urgente apenas contentar-se com o desejo de tê-los na palma da mão. E isso se alcança ao imaginar-se acariciando as suas penas com cuidados invisíveis e os afagando apenas com o olhar, sossegadamente.
Para bem criar passarinho é essencial possuir um arco-íris, ilusão de água e sol, rabiscando no céu para passarinho pousar depois da chuva. E isso se faz possível, escolhendo nas nuvens as sete cores, ao entardecer.
Para bem criar passarinho é preciso ter ao alcance das mãos a linha do horizonte para escrever poesia para passarinhos cantarem. E isso de torna possível soltando o olhar para o bem depois das montanhas, dos mares, deixando o carinho murmurar rascunho de poema.
Para bem criar passarinho é bom visitar as montanhas para deixar repousar as penas. E depois de altos passeios, sem deixar marcas de passagem, descansar entre montes e distância. Por ser assim, contemplar com o coração o além, onde só as rezas enxergam.
Para bem criar passarinho é obrigatório cultivar jardins, canteiros, flores e folhagens, para deixá-los por terra, soltos, aos bandos, ciscando apressados, perseguindo pequenos insetos e suspeitas raízes dormindo misteriosamente entre cigarras ainda por cantar.
Para bem criar passarinho é correto apreciar as lagoas esculpidas com o rumor do vento e apreciá-los entre mergulhos e banhos. Para isso, é bom desconhecer a rosa-dos-rumos e traçar o percurso segundo a luminosidade das estrelas.
Para bem criar passarinho é necessário prender o universo - dos mares do firmamento – em uma gaiola respirando azul e infinito por todos os lados. É seguro declarar que nenhum espaço é demais para os voos. Para bem criar passarinho é preciso experimentar as asas, sempre.
 
 

 

Para criar passarinho
Global Editora, 2ª edição