O Duplo, de Fiódor Dostoiévski

O livro O Duplo (256 p.), de Fiódor Dostoiévski, foi lançado em 2011 pela Editora 34, com tradução e posfácio de Paulo Bezerra e gravuras de Alfred Kubin. Publicado originalmente em 1846, a tragicomédia do “senhor Goliadkin” é cheia de momentos impagáveis relacionados à sua incoerente autoimagem e ao seu relacionamento (psico)patológico com a realidade de um modo geral.

Resumidamente, a história começa com as aventuras do senhor Goliadkin na tentativa de causar uma boa impressão em um evento na qual não foi convidado. Mas o “nosso herói” não está, digamos assim, muito saudável... Tanto é que logo no segundo capítulo, ele vai ao consultório de um médico - semelhante a um psiquiatra –, que o acompanha já há algum tempo, e lhe recomenda dar um tempo nas atividades atuais para descansar um pouco a mente e se possível procurar uma "mudança radical" nos seus hábitos, pois o "nosso herói" parece cada vez mais desequilibrado. O senhor Goliadkin ignora solenemente os avisos do seu médico e como conseqüência... bem, como conseqüência, temos uma história divertidíssima que é muito mais uma tragédia do que propriamente uma comédia.

Ao longo do livro O Duplo, pouco a pouco o senhor Goliadkin vai se revelando quase que por completo ao leitor - e também a si mesmo -, através de suas próprias atitudes contraditórias em relação aos seus discursos internos e externos e principalmente através dos seus juízos morais sobre as condutas públicas do seu “vil desafeto” - que é o seu duplo - o "senhor Goliadkin segundo".

A partir do quinto capítulo (o livro tem 13 capítulos), o duplo do senhor Goliadkin finalmente passa a fazer parte da trama. Cabe dizer que embora Dostoiévski mantenha suspense sobre a real natureza do senhor Goliadkin segundo – se ele é um fenômeno puramente psíquico ou então se é um ser material -, sua função na trama torna-se logo evidente: o duplo serve para confrontar o “nosso herói” senhor Goliadkin em tudo aquilo que ele não pode saber de maneira honesta e realista sobre si mesmo. Até o fim do livro, esse será o papel do senhor Goliadkin segundo na história, tornando a tragédia do "nosso herói" tão realista em seus acontecimentos subjetivos quanto fantástica em sua concepção objetiva dos fatos narrados.

A maneira na qual Dostoiévski narra a sua história merece um destaque especial. No início da trama, o narrador conta a história do senhor Goliadkin na terceira pessoa, de maneira distanciada; mas aos poucos, ele vai integrando sua consciência à do senhor Goliadkin, arrastando o leitor gradativamente ao drama e à confusão mental vivenciada pelo “nosso herói” até alcançar o aguardado clímax no capítulo final.

Uma curiosidade que me chamou a atenção é a proximidade de algumas características da personalidade - e também do comportamento - do Sr. Goliadkin com algumas características da personalidade do personagem-narrador do livro Memórias do Subsolo, especialmente a segunda parte deste livro, intitulada “A propósito da neve molhada”. No posfácio do livro O Duplo, Paulo Bezerra comenta que desde muito jovem o escritor Fiódor Dostoiévski demonstrou muito interesse em estudar psicopatologias desencadeadas por fatores emocionais. Isso ajuda a esclarecer um pouco sobre o método de concepção das personagens de Dostoievski, uma vez que ele conseguiu, ao longo de toda a sua obra, representar de maneira inigualável uma galeria muito rica de personagens paranoides e esquizoides, tal qual o senhor Goliadkin e o personagem-narrador de Memórias do Subsolo.

Enfim, esse é um livro bem leve e engraçado - ainda hoje eu me divirto ao recordar de algumas passagens trágicômicas envolvendo o "nosso herói" e o seu "vil desafeto", o senhor Goliadkin segundo -; e é também um livro muito singular (!), que apresenta uma brilhante análise psicológica de um tipo muito particular de dissociação/alienação mental na personalidade de um “herói” que é tão trágico quanto cômico. Recomendo a leitura desse livro para estudantes e profissionais da psiquiatria, da psicologia e para todos aqueles que gostaram de outras obras de Dostoiévski, especialmente as obras da primeira fase do escritor, antes dele ter sido preso, julgado, condenado à morte e ser deportado à Casa dos Mortos na Sibéria.