Trilogia Autobiográfica de Maksim Górki

“Eu me vejo na minha infância como uma colmeia, aonde várias pessoas simples, insignificantes, vinham, como abelhas, trazer o mel de seu conhecimento e das reflexões sobre a vida, enriquecendo generosamente o meu espírito, cada um como podia. Muitas vezes, acontecia de esse mel ser sujo e amargo, mas todo conhecimento era, mesmo assim, um mel.”

Aleksiéi Maksímovitch Piechkóv (1868-1936) nasceu em Níjni-Nóvgorod e se consagrou na literatura com o pseudônimo Maksim Górki, ou Máximo, o Amargo. O jovem Aleksiéi, filho de um estofador, perdeu o pai muito cedo e teve que morar desde então com os pais de sua mãe – que depois viria a se casar com outro homem e deixaria seu filho Aleksiéi para ser criado pelos avós maternos. Como consequência desta perda irreparável, o jovem Aleksiéi recebeu uma educação muito severa de seu não tão querido avô e recebeu uma profunda influência de sua muito estimada avó materna – na qual demonstraria um gigantesco afeto e admiração nos livros Infância e Ganhando meu Pão. Górki ilustou sua avó como uma bondosa senhorinha cristã quase pagã, tão caridosa quanto generosa, que contava diversas histórias folclóricas e lendas locais que encantaram de modo irreversível o então pequeno Aleksiéi e influenciaram a sua gloriosa carreira como um dos maiores contadores de histórias da literatura russa.

Após vivenciar uma infância pobre, sem muitos recursos materiais e alternativas de enriquecimento pessoal, Máximo, o Amargo, mudou-se para Kazan em 1884 (aos 16 anos) com a esperança de ingressar na universidade local – onde jamais pôde ingressar. Nas palavras de Górki:

“E lá estava eu numa cidade semitártara, num quarto apertado de uma casa de um só andar. A casinha sobressaía isolada numa colina, no fim de uma rua estreita e pobre, uma das paredes dava para um terreno baldio que sobrara de um incêndio e nesse terreno cresciam densas ervas daninhas, e no meio das moitas de absinto, de bardana e de azedas-bravas, no meio dos arbustos de sabugueiros, erguiam-se as ruínas de um prédio de tijolos, ao pé das ruínas havia um vasto porão, ali moravam e morriam cães abandonados. Eu gostava muito desse porão, uma das minhas universidades.”

Maksim Górki caminhou por milhares de verstas pela velha Rússia cazrista e trabalhou como ajudante de sapateiro, lavador de pratos, assistente de arquiteto, pintor de ícones, estivador, cantor de coro e padeiro, conhecendo neste caminho grupos populistas, intelectuais revolucionários, pregadores cristãos ortodoxos e cristãos tolstoianos, pescadores, ladrões, guardas, pequenos-burgueses e suas esposas, prostitutas, andarilhos bêbados, soldados violentos e muitos mujiques ignorantes e perversos – que desde cedo convenceram-no da ideia de que não poderiam ser eles a encarnação das maiores virtudes humanas como pregava então na época a intelligentsia russa de um modo geral.

Não conseguindo encontrar um sentido para a existência e cansado do sofrimento incessante e paradoxal da vida cotidiana, Górki tentou matar-se com um tiro no peito, mas fracassou também nesse projeto suicida, fato este que contribuiria em muito para o aparecimento da tuberculose que o atormentaria pelo resto da vida.

Os muitos livros que foram lidos por Górki representaram, ao longo da sua apaixonada vida tortuosa, uma possibilidade de transcendência perante a realidade limitada que a Providência lhe proporcionou. Além de suprirem a carência dos estudos regulares de uma universidade convencional - que nunca vieram a ocorrer na vida de Górki -, os livros representavam uma possibilidade de superação de sentimentos e ideias vivenciadas por ele e que não encontraram resposta nem vazão na realidade presente:

“Freqüentemente, conto a ele [a Iákov ,em Ganhando Meu pão] toda espécie de histórias que li nos livros; todas elas se emaranharam, se confundiram em mim, fervendo, numa história bem comprida de uma vida inquieta, bonita, repleta de fogosas paixões, loucas proezas, uma nobreza purpúrea, êxitos fantásticos, duelos e mortes, nobres palavras e ignóbeis ações. [...] Essa história, em que eu, conforme a inspiração, modificava os caracteres das pessoas e transferia os acontecimentos, constituía para mim um mundo em que eu era livre como o Deus do vovô: também ele brincava com tudo a seu bel-prazer. Não me impedindo de ver a realidade tal como era, não esfriando a minha vontade de compreender as pessoas vivas, esse caos livresco protegia com uma nuvem transparente, mas intransponível, de uma porção de lama infecta, das peçonhas da existência.”

Ao longo de sua vida, Maksim Górki teve uma vida literária muito intensa e polêmica. Ele tornou-se amigo de verdadeiros titãs literários como Liev Tolstói e Anton Tchekhov, além de apadrinhar literariamente escritores importantes como Isaac Babel e Anton Makarenko. Mas Górki também teve grandes divergências provocadas por seus posicionamentos éticos e políticos com grandes figuras da história política do séc XX como o presidente Roosevelt, o czar Nicolau II e os líderes socialistas Lênin e Stalin - que forçaram-no a sair e voltar da Rússia em inúmeras oportunidades.

Quanto aos livros que foram aqui resenhados, tanto Infância quanto Ganhando meu Pão e Minhas Universidades têm um estilo muito elevado, sendo assim uma tarefa muito difícil categorizá-los meramente como ensaios memorialísticos ou como romances autobiográficos. Seria um desprestígio à Literatura dizer que estes livros possuem momentos cinematográficos, embora a fluência do texto e a força impressionante das imagens narradas por Górki possa tornar natural esta comparação. Mas a trilogia autobiográfica de Górki é literatura em forma pura, ou seja, só poderia ser gerada e representada a partir da beleza cadenciada proporcionada pelo magistral manuseio de caracteres linguísticos, na qual Maksim Górki é um dos grandes mestres da literatura mundial em todos os tempos.

Enfim, eu tenho a impressão que a Rússia apresenta e representa o que existe de melhor na literatura mundial entre a segunda metade do Séc. XIX e parte da primeira metade do Séc. XX. A trilogia autobiográfica de Maksim Górki (Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas Universidades, lançados em 1914, 1916 e 1923 respectivamente) foi escrita por um autor muito humano e sensível e proporciona uma experiência literária muito rica, com uma prosa límpida e carregada de sentimentos fortes, francos, belos e amargos. As edições que foram resenhadas foram editadas e lançadas no Brasil em 2007 pela Editora Cosac Naify, com acabamento editorial caprichado e prefácio, posfácio e traduções dos sempre excelentes Rubens Figueiredo e Boris Schnaiderman. Recomendo a leitura dos três livros - principalmente Ganhando Meu Pão – aos interessados em literatura russa, romances memorialísticos e ficção documental.

REFERÊNCIAS:

GÓRKI, Maksim. Infância. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2007, 312 p.

GÓRKI, Maksim. Ganhando Meu Pão. Trad. Boris Schnaiderman São Paulo: Cosac Naify, 2007, 456 p.

GÓRKI, Maksim. Minhas Universidades. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2007, 280 p.