O Idiota, de Fiódor Dostoiévski

"Sócrates, pobre, é apenas um fazedor de frases, estúpido e pernicioso, sendo tolerado unicamente no teatro, porque apraz ainda ao burguês ver a virtude em cena".

Fiódor Dostoiévski

O livro O Idiota (1869) é um romance escrito pelo russo Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881) e narra a história do príncipe Liev N. Míchkin em seu retorno à Rússia após quatro anos de tratamento de saúde mental em um sanatório localizado na Suíça.

O romance foi dividido em quatro partes pelo autor russo e inicia com a chegada do príncipe à São Petersburgo, vindo de trem da Suíça, totalmente pobre e sem recursos. Ao chegar à São Petersburgo o príncipe parte em busca da amizade de uma parente distante, originária da nobreza pequeno-burguesa russa.

Dentre os muitos eventos interessantes presentes na primeira parte do romance destacam-se a curta estadia do príncipe na casa de uma família tão pobre quanto humilhada; seu primeiro contato com a “desonrada” e fascinante Nastássia Filipóvna; o desenvolvimento gradativo do sentimento complexo do príncipe por esta personagem; algumas observações profundas do príncipe Míchkin sobre o desespero subjetivo de criminosos condenados a morte; um belo relato sobre o poder milagroso da compaixão compartilhada entre crianças e adultos - que tornam menos sofrida a vida de uma pobre mulher infeliz -; e o relato dos dessabores de uma tumultuada festa de aniversário, seguida do recebimento de uma herança inesperada que mudará radicalmente o status social do “nobilíssimo" príncipe Liev Míchkin.

A segunda parte do romance se passa seis meses após o término da primeira parte. O cenário da suja e abafada cidade de São Petersburgo é substituído pela calmaria da cidade de veraneio de Pávlovski. O príncipe reaparece na trama estando sempre cercado por aproveitadores ignóbeis ou por pessoas honestas que ora admiram-no de modo desmedido e ora ridicularizam-no com resquícios de piedade.

Nessa segunda parte do livro, destacam-se os capítulos que apresentam a ideia central de cristianismo e a essência do sentimento religioso para o príncipe – e consequentemente para o próprio Dostoiévski -; uma tentativa de assassinato digna de uma excelente obra de suspense; as considerações sobre os efeitos de um ataque epiléptico por parte do príncipe; a apresentação do poema “cavaleiro pobre” de Pushkin e sua relação simbólica (ou não) com o príncipe Míchkin; e a introdução de uma turma de “jovens niilistas” pobres que “exigem” seus “direitos” apelando à honra e à nobreza do príncipe utilizando como argumentos a chantagem, a difamação e a desonra. Além disso, nessa segunda parte os rumos da história passam a ser modificados gradativamente com o surgimento de um novo amor na vida do príncipe.

Na terceira parte, o amor do príncipe por uma certa personagem passa a ser mais e mais intensificado, tornando-se cada vez mais evidente que este sentimento é completamente diferente do sentimento que ele possui por Nastássia Filipóvna, pois o que ele sente por Nastássia é um amor essencialmente cristão, ou seja, é um sentimento constituído de pura compaixão.

Destacam-se nessa terceira parte do romance os capítulos onde o príncipe demonstra seus confusos sentimentos e desejos por uma certa personagem, como ela lida com seus próprios sentimentos e os capítulos envolvendo o projeto suicida de um moribundo egoísta intitulado “Minha Explicação Necessária”.

Na quarta parte do romance ocorre a surpreendente conclusão da história. O príncipe precisará escolher de que modo buscará a sua felicidade, seja através do amor físico, fruto de seu incontrolável desejo por uma “linda” mulher de “alma pura”, ou então através do seu amor cristão por uma outra mulher, tida como “desonrada” e “devassa”, fruto de seu ideal de compaixão pela humanidade. O príncipe faz a sua importante escolha; seu casamento é marcado. O final da história é arrebatador!

Destacam-se nesta quarta parte os capítulos em que é oferecida uma festa para um seleto círculo da nobreza pequeno-burguesa russa, na qual o príncipe professa um brilhante discurso sobre a principal diferença entre o cristianismo católico apostólico romano e o cristianismo ortodoxo russo, e também o capítulo final do livro, seguido do capítulo de conclusão que apresenta os desdobramentos deste capítulo final.

Um aspecto que precisa ser comentado nesta resenha sobre O Idiota é que caso o leitor do livro queira compreender melhor os aspectos ideológicos e filosóficos apresentados neste livro ele precisará conhecer pelo menos um pouco sobre como os temas “cristianismo” e “niilismo” fundamentam as obras maduras de Dostoiévski.

Tanto em Crime e Castigo quanto em Os Demônios e Os Irmãos Karamázov a ausência do cristianismo, como ética e como metafísica, torna-se o contraponto ideológico implícito aos equivocados valores da modernidade, que sustentam o surgimento de uma ética e uma metafísica de ateus e niilistas, resultando na proliferação de criminosos e assassinos de toda espécie.

Para Dostoiévski, o niilismo é produto de um ateísmo militante sustentado por uma ética que nega a existência de valores absolutos ou sagrados e com isso seu movimento político natural é revolucionar – ou perverter - o status quo tradicional da Rússia (e do ocidente) a nível metafísico, ontológico e ético, pois como o autor mesmo alerta em mais de uma oportunidade no livro Os Irmãos Karamázov: “se Deus não existe, então não há crime e não há pecado, tudo é permitido”. Nesta perspectiva, o niilismo como fundamentação de valores morais levaria, em última análise, à impossibilidade da convivência justa e digna entre os homens, pois a negação dos tradicionais valores morais cristãos resultaria, na pior das hipóteses, em pura barbárie travestida de civilização, e na melhor das hipóteses, na divinização do homem em si, sem a necessidade da transcendência do homem em algo maior do que ele mesmo, que deveria ocorrer através da sua fé em Deus e nas virtudes e valores cristãos, tais como a compaixão, o perdão e o amor ao próximo.

O niilismo - assim como o liberalismo europeu que Dostoiévski também rejeitara - toma o homem como medida última de todas as coisas. O egoísmo tornar-se-ia inevitável para o niilista, refém de uma lógica radicalmente racional que nega a existência de sentido para a vida humana, como consequência da conclusão equivocada (para Dostoiévski) de que Deus não existe. Niilistas - e liberais - caminhariam (juntos) para o inevitável reino do “eu” ou reino do “ego” como medida última de todas as coisas. Esse reino do “eu” ou do “ego” seria o reino do próprio anticristo, pois Cristo não poderia mais ser invocado para estar entre os homens e estes fatalmente acabariam perdendo a esperança de algum dia fazer parte do sagrado reino de Deus.

Essa é uma compreensão resumida sobre como os temas “cristianismo” e “niilismo” são abordados numa perspectiva moral na obra madura de Dostoiévski. Para este autor, esses temas ideológicos são extremamente fecundos para a dramatização de conflitos e tragédias da existência humana. E é especialmente no livro O Idiota que Dostoiévski foi mais ousado a nível estético sobre como representar a tragédia da inviabilidade prática da ética cristã na vida cotidiana do homem moderno.

O príncipe Míchkin é como um avatar do próprio Cristo que ressurge entre os homens para novamente trazer esperança a eles. É significativo que na primeira parte do romance alguns personagens digam diretamente ao príncipe que foi o próprio Deus que o enviou para lhes salvar de uma situação delicadíssima, simbolizando nos pequenos dramas literários alguns dos grandes dramas existenciais dos contemporâneos de Dostoiévski. Infelizmente, esse inesquecível personagem, que é um autêntico Dom Quixote eslavo, um ser “perfeitamente belo”, possuidor de uma fé inabalável em Deus e na sua amada terra russa, infelizmente nem mesmo ele poderia resistir ao reino do “eu” ou do “ego”, o reino do anticristo, porque sendo ele um cristão em seu sentido supremo só poderia haver nele uma total ausência de vaidade e de egoísmo que acabariam confundidas pelos demais personagens com tolice, ausência de consciência de si mesmo ou então como falta de respeito por si próprio. É por isso então que logo ele, que ama incondicionalmente a todos como é capaz de amar a si mesmo, logo ele, jamais será poupado por seus pares por possuir e exercer um senso de justiça desmedidamente bom, encontrando na conclusão de sua história um trágico juízo de valor que é inevitavelmente compartilhado entre ele e os leitores da sua história: não estamos prontos para aprendermos a amar incondicionalmente uns aos outros e se o próprio Cristo ressurgisse no nosso mundo ele seria novamente crucificado por sua natureza profundamente boa, ou então seria expulso da convivência entre os homens por possuir um caráter admiravelmente divino que seria confundido com inépcia, idiotice ou insanidade.

Enfim, caso você nunca tenha lido nada de Dostoiévski, o livro O Idiota poderá ser um excelente primeiro contato com a obra deste grande escritor. Se você já leu alguma outra obra de Dostoiévski, saiba que esse é um livro único, talvez o mais impressionante de toda a sua obra. Em todo caso, leia este livro assim que puder. O Idiota é, sem sombra de dúvidas, um dos cânones sagrados da literatura mundial.

Referências

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2011. 680 p.