O Casamento, de Nelson Rodrigues

O Casamento (1966) é um romance escrito pelo dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980) e narra os acontecimentos desencadeados pela descoberta de uma possível relação homossexual entre um futuro noivo e outro homem a dois dias da celebração do sagrado matrimônio. Traição, homossexualismo, incesto, estupro, perversão, suicídio e homicídio são temas que pululam por entre os 28 capítulos desse eletrizante romance - o único publicado por Nelson Rodrigues originalmente em formato de livro - que escancara o que há por debaixo de toda a hipocrisia de uma das mais importantes celebrações humanas da cultura ocidental.

Sabino é um pai de família rico e conservador. Casado e pai de quatro filhas, Sabino nutre um amor especial pela sua filha mais nova, Glorinha, que vai se casar em breve. Quando um amigo da família descobre que o futuro genro de Sabino é provavelmente um “pederasta”, inicia-se a tragédia neurótica de Sabino, que na vã tentativa de realizar o casamento inviável de sua filha mais nova decide sustentar a qualquer custo as aparências enganosas de sua vida e identidade pessoal, onde um homem moralmente elevado, que possui uma família feliz e saudável, deve lutar com unhas e dentes para preservar a sagrada instituição familiar, independentemente de sua real viabilidade frente a toda mentira e hipocrisia de seu cotidiano.

O Casamento é uma tragédia moderna e neurótica, num sentido bem freudiano. Sabino é um homem profundamente moralista, que manifesta pulsões ora incestuosas, ora homossexuais e ora sádicas. Ele é um homem muito obsessivo com algumas ideias relacionadas à humilhante morte do seu amado pai, e parece haver uma correlação entre a vergonha e a culpa de amar profundamente um “cadáver humilhado”, que morreu literalmente “esvaindo-se em fezes” e a forma com que Sabino se reprime ou destina a sua satisfação sexual, seja ela através de pulsões incestuosas, homossexuais ou sádicas.

Mas O Casamento não se resume apenas à narrativa da tragédia neurótica de Sabino. O Casamento é também um retrato fiel de toda uma complexa rede de máscaras e auto-enganos que permitem o mínimo de convívio social civilizado entre os personagens da trama rodriguiniana, e que representam de certo modo as máscaras e auto-enganos dos brasileiros de um modo geral. É difícil dizer se os personagens do romance de Nelson Rodrigues são todos uns cínicos pervertidos ou se são simplesmente uma retratação fidelíssima de brasileiros de carne e osso, que lutam bravamente para encontrar uma felicidade perene no seu dia-a-dia, pagando o preço de não saberem com exatidão quem eles são e nem o que verdadeiramente desejam, uma vez que as suas personalidades verdadeiras são constantemente estranguladas por máscaras convencionalmente distribuídas através de instituições sociais como empresas, igrejas e a própria família nuclear burguesa.

Por ser uma tragédia com forte carga dramática, o romance poderia ser tanto pesado quanto piegas, caso seu autor não fosse um grande talento literário como é de fato o genial Nelson Rodrigues. Seu texto é agil, cruel e muito intenso. A leitura de O Casamento é uma experiência tão visceral quanto viciante, e acredito que não seja nenhum exagero dizer que esse romance é uma pequena jóia literária moderna como raramente encontramos na nossa amada língua portuguesa.

A edição de O Casamento lançada em 2006 pela editora AGIR possui 269 páginas e inclui um apêndice de 7 páginas que situa o leitor sobre as polêmicas envolvidas na publicação original da obra, que foi censurada pelo regime militar apenas um mês e meio após o seu lançamento por supostamente atentar contra a sagrada “organização da família”. Esse acontecimento em particular tomou proporções gigantescas para a história da crônica literária no Brasil, pois a censura do seu livro gerou em Nelson Rodrigues uma revolta avassaladora, especialmente por ele não recebido qualquer apoio ou incentivo de intelectuais e artistas da esquerda (ou da direita) após a divulgação da censura de sua obra literária. Para os leitores e admiradores de Nelson Rodrigues, esse acontecimento em especial resultará em projetos literários importíssimos, pois desta revolta brotará o principal incentivo para que Nelson passasse criticar o pensamento e a cultura do Brasil através das suas “Memórias” e das suas “Confissões”, que seriam publicadas posteriormente em livros como “O Óbvio Ululante” e “A Cabra Vadia”.

Quanto ao romance de Nelson Rodrigues, cabe dizer que antes de ter sido censurado pelo regime militar, esse livro alcançou um grande sucesso no número de exemplares vendidos, disputando preferências no mercado editorial brasileiro com outros grandes sucessos de vendas e crítica, como o livro “Dona Flor e seus dois maridos”, de Jorge Amado. E passado quase meio século desde a sua publicação original, é impressionante como O Casamento do "reacionário" Nelson Rodrigues continua sendo uma leitura extremamente agradável, e que pode evocar tabus e preconceitos mesmo entre os leitores mais progressistas do Brasil atual. Por ser uma leitura muito instigante e pela sua capacidade de surpreender o leitor a cada capítulo, recomendo a leitura de O Casamento a todos os brasileiros, sejam eles mais reacionários ou mais progressistas, e recomendo especialmente aos inúmeros admiradores do enorme talento dramático desse verdadeiro gênio chamado Nelson Rodrigues.